segunda-feira, março 06, 2006

CADEIRAS COM RODAS

Experiência-apuração: Ramon Cavalcante, Pedro Rocha e Tiago Coutinho
Fotos: Ramon Cavalcante
Texto: Pedro Rocha


E de tanto passar, descer e subir, se fez reportagem o cotidiano. O grupo TR.E.M.A. conta em uma seqüência sem começo nem fim, o que e quem passa pelos terminais de Fortaleza, enquanto a cidade transa, se embriaga, dorme... CADEIRAS COM RODAS contará em capítulos* as histórias ao leu de quem passa, trabalha ou mora por lá, ai, bem ai, debaixo das venta de quem passa apressado no pico das 18. Esperamos encontrar você num dessas viagens do corujão Grande Circular, assim, só charlando mesmo, pra gente conversar um pouco, contar histórias e tentar mudar alguma coisa. Parada Solicitada.

*Os capítulo serão publicados sem periodicidade, mas com um intervalo máximo de 15 dias.
**O blog terá outras reportagens além dessa série.


Capítulo 1: e na guarita do terminal do Papicu às 2 horas da madrugada de uma quinta-feira... Paulo tira um saquinho de pó de guaraná e despeja nos dois copos de café, um pra ele, outro para o Carlos. Bebem como remédio. No rádio da guarita, forró; o trocador do terminal passa o tempo ouvindo FM 93 e Liderança, quando não, conversando com o segurança Carlos e dando uma volta sem largar o olho da roleta. Nessas madrugadas mais lentas, como as de uma quinta-feira, ela roda de 100 a 170 vezes. Um movimento mais calmo, mas que diz tanto do urbano, quanto o pico caótico das 18 horas.

O terminal é decadente e silencioso no que tem de mais urbano essas palavras, no que tem de silêncio o olhar e o ruído. Marquise segura para pedintes, moradores da rua que se espreguiçam nos bancos talhados em concreto. Nessas horas em que os dias rebentam em fim e começo, o percurso vai de uma ponta a outra, dos restaurantes da beira do mar à periferia. Quem passa nas madrugadas pelo terminal, descendo e subindo em corujões, são os mesmo que servem caipirinha, cerveja, lagosta grelhada, e principalmente, nesta quinta-feira, caranguejos.

Carlos é um preto de 41 anos, gordo de cabelo ralo e bigode escuro que guarda desde setembro com mais dois colegas as madrugadas do Terminal do Papicu. Seu escudo amarelo e preto da Thompson Segurança contrasta com sua fala simpática, nada da frieza dos homens de preto. Sabendo do assunto, introduz o tema enquanto aponta para uma mulher que anda com os seios pro lado de fora.

— Tem muito é isso aí aqui de madrugada... tem droga, aí é complicado, porque se você pega e toma, eles endoidam, faz escândalo... pior são os homossexuais do banheiro, caba chega aqui às 19 horas e fica até 3, 4 horas só de tocaia no banheiro... quantas vezes tive que ir lá, tirar de quatro viado fazendo as coisas... se comendo...
— E ai, faz o que?
— E o pior que eles são cheios de razão, um dia desse eu tive que ir lá por causa de reclamação de usuário, tirei ele de lá e trouxe bem praqui [apontando para o meio da plataforma vazia] aí ela saiu gritando que tinham mantido ela em cárcere privado...

Os que dormem ele deixa pra acordar às 5 horas, quando o movimento aumenta, fica um tanto constrangido, e quando o terminal tá mais calmo deixa os sonhos se espicharem mais um pouquinho. Moradores do terminal, como aquele deitado no banco com uma cadeira de rodas ao lado, que na história contada por Carlos é um velho que tem casa, família e aposentadoria, mas vive no terminal com direito a visita das suas filhas. Aquela outra ali vem toda noite, só dormi sentada... Margarida Marques Fernandes de Lima, dita ela pausadamente. Pergunta de que família sou, pede referências, tenta adivinhar a linhagem. Quantos anos? “Vou fazer 57, não, fiz 57 em novembro.”, mas bem poderia ter feito 70 antes de ontem.

Capítulo 2: Dona Margarida espera sentada... dorme nos bancos cinza-industrial, sempre sentada, “durmo não, cochilo”. Uma mochila no colo, olhar cansado, voz baixa, enrolada até a testa com panos que encontrou no lixo, bem a imagem de uma retirante que fez o caminho ao contrário, nascendo em Brasília, passando pelo interior do Ceará até Fortaleza, ainda com 18 anos de idade.

Há quatro anos dorme ali no terminal, abancada a espera do filho, que nessa alturas deve tá com uns 16 anos diz ela.

— Eu ouço ele... ele diz... estuprado.. .
— Tão estuprando ele?
— Eu num já disse... Os malandro tão com meu filho, ai eu ouço, o menino.
— Que malandros?
— Os malandros tão com meu filho, seqüestraram... eu vou já já cobrar da policial porque tão matando o meu menino e não fazem nada, nada, eu vou lá cobrar dela, ela tá recebendo, tem que fazer o trabalho.



Mal dá pra ouvi-la, fala com sono, colocando o pano na frente da boca como a bocejar. Conta uma história enrolada, confusa, em tom confessional, conspirando alguma coisa. Como assim, não entendi direito? “Eu num já disse...” Começa tudo de outro ponto. Ouve o filho e volta todas as noites para espera-lo, não pode voltar para Brasília sem o menino. Junta dinheiro pra vê se compra uma televisão e o filho volta. “Fui pro interior, ai mangaram muito dele porque não tinha televisão”.

Dormiu uns tempos na casa da madrasta, mas o ouvia reclamar que estava só na rua e voltou para cá. Dorme curvada sobre a mochila, coberta pelos lençóis achados. Na mochila traz panos e roupas velhas, que também enchem uma sacola de plástico branca.

“Eu num já disse...” e lá se vai a conversa pras banda da Igreja Universal, do marido que fez trabalho pra afastar o filho dela, “foi até pra África parece...” Era obreira e evangelizadora junto com o filho quando o marido fez essa arrumação. Trabalhou também de doméstica, lavando e passando. “Eu trabalhei com um senhor que falava que a situação de Fortaleza nunca seria resolvida. Mas tem que ser resolvida”. Fala a velha, no limiar entre acordada e sonolenta, lúcida e louca. E dorme.

...E Carlos vai apontando, avisa que daqui a pouco chega uma lôra que toda noite tá aqui tentando arrumar um namorado entre motoristas e trocadores. Aquele ali é o irmãozim doido, prega quase toda madrugada no terminal, aquele... (segue no próximo capítulo)