quarta-feira, março 08, 2006

CADEIRAS COM RODAS (continua)


Capítulo 3: Luiz Mendes, 30 anos. Ser humano e profissão gari. No sorriso, faltam-lhe dentes. Nas palavras, falta-lhe voz. No convívio, sobram-lhe histórias. Um dia. Uma narrativa e alguns capítulos. O terminal também o acolhe. Não existem milhares de Luiz como este. Não. Ele é único. Ele é Luiz, o Mendes. 30 anos. Marido. Pai de três filhas e dois filhos.

Tiago Coutinho


Da porta de sua casa dá até para ver a parada de ônibus. São apenas 40 metros. Mesmo próximo, Luiz precisa sair o mais cedo possível de casa. O medo de ser assaltado continua. 22h. Ele espera calado com a farda azul claro. O céu está meio cinza e esconde as estrelas. Talvez chova. Precisa logo arrumar dinheiro e ajeitar as goteiras do teto. Esses dois últimos anos São Pedro tem sido até generoso. Poucas foram as chuvas fortes. De longe, ele avista os faróis de ônibus. É o Grande Circular, esse aí? É sim. Lá vem ele. Levou sorte, chegou na hora. Vazio, ele se acomoda em um banco.

É começo de mês. Parece que amanhã o dinheiro já sai e haja contas para pagar. Algumas prestações estão atrasadas. Outras vão vencer logo. A Casa Pio, os óculos da mulher, as roupas da Riachuello. Mas se pagar tudo de uma vez, não sobra nada pro resto do mês. É foda. Mas se aperta em algo acolá, pode ser que dê certo. E se faltar dinheiro na metade do mês, faz os bico, ora mais. Cata e recicla. Tem problema não. O melhor mesmo é rezar pra num faltar nada. Já tá com um ano que as coisas melhoraram. Só de pensar na tranqüilidade de agora. O trabalho atual nem se compara com o reciclagem, sem ganho fixo. O horário da noite é mais calmo, tranqüilo. É perigoso, mas ele é homem e pelo menos a mulher conseguiu ficar de manhã...

O ônibus pára. Chegou ao terminal. Lá está a Maria de Fátima. Ele o cumprimenta. Ela logo avisa:

– Hoje, tá só nós dois. Nem o Nonato nem a Mazé vieram. Aí eu tava pensando em dividir assim. Tu fica com os pavilhões das ponta e eu limpo o resto. Certo?

– Tá certo.

Antes, um caldo. Antigamente havia até um mais gostoso, agora só tem esse de R$ 1,20, mas pelo menos vem com uns pedacinhos de pão. Dá pra forrar a noite. Hora de trabalhar. Uma vassoura, uma pá, alguns sacos pretos, um camburão, e o tempo não demora a passar. É a conta certa. Quando termina de limpar tudo, já ta na hora de ir. Óbvio que ele mesmo programa seus intervalos. Hora conversa com Carlos, por outros minutos senta numa lanchonete. Fala com a Mazé. Brinca com a doida que sempre o perturba. Nisso o tempo passa. Ele observa aquelas pessoas ao seu redor. Assim como ele, elas vão ali todos os dias.


Capítulo 4: A história de Luiz vira pauta

*****

– Oi, boa noite! Posso falar com você?
– Pode – Luiz continua a fazer seu trabalho.
– É porque eu e alguns amigos estamos fazendo umas matérias sobre o terminal de madrugada. Aí eu queria saber se você poderia me dar algumas informações.
– Eu?
– É o senhor. A propósito, como é seu nome?
– Luiz.
– Luiz de que?
– Luiz Mendes.
– Pois é seu Luiz, posso te entrevistar.
– Rapaz....
– Eu não quero atrapalhar o seu serviço. Se o senhor quiser, eu vou acompanhando seu serviço e vamos conversando, pode ser?
– Tá certo, então...
– Alguém já lhe entrevistou, Luiz?
– Não.
– Mas as pessoas vêm falar com o senhor aqui de noite?
– Vem.
– E o que elas falam com você?
– Ah, vem perguntar como é o emprego.
– É? E o que você diz?
– Eu digo qual é a firma que tem que deixar o currículo.
– Ah, as pessoas vêm te perguntar como consegue esse emprego?
– É.
– E além disso, elas falam o que com você?
– Nada não.

*****

As perguntas faltam por alguns momentos, e o silêncio pede licença. As respostas são certeiras, rápidas, objetivas e fragmentadas. As falas contrastam na dimensão e são costuradas no enredo da memória. Depois da conversa, que vai e volta sem uma lógica precisa, um caderninho de anotações difusas.

A família:
É ajuntado com Joelma, cujo sobrenome ele não sabe. Possui cinco filhos. Todos são registrados. Joyce tem oito anos e é filha de criação – o irmão da esposa a deixou aos cuidados de Joelma quando ela ainda era bebê. Hugo e Igor, os filhos da primeira mulher, não moram com ele. Luiz engravidou a primeira mulher quando tinha apenas 16 anos. Sua mãe lhe deu uma cagaço, mas já não tinha mais jeito. Hoje é órfão de pai e mãe. Quando morrera, sua mãe deixou de herança uma casa. São 40 m². Um quarto, uma sala, um banheiro e a cosinha. No quarto, apenas uma cama grande. Onde dormem ele, Joelma e as duas filhas mais nova Larissa, 3, e Júlia, 5. As meninas estão crescendo. Logo, não será mais possível dividir a cama. Aí, Luiz construirá, no terreno de sua mansão, um quarto para as meninas.

A rotina:
5h – O terminal já se encontra lotado. O expediente se encerra. Volta para casa.
6h – Chega em casa e toma o café pronto, deixado por Joelma. Esta, desde às cinco da manhã, já trabalha no terminal, onde também faz limpeza. Café bebido, ele deixa as filhas nas escolas. As duas mais velhas estudam em escola mesmo. A mais nova passa o dia na creche.
7h30 – Volta para casa. Conversa com alguém no meio do caminho. Vai dormir.
12h30 – É acordado pela esposa. O almoço já está pronto, pode ser carne ou frango, ele não tem frescura para comida. Na televisão, passa o Cidade 190. Ele gosta de assistir o programa durante a refeição. É importante ver as reportagens. Só gosta desse tipo de programa. A TV Jangadeiro é o melhor canal. De bucho cheio, volta a dormir.
20h – Janta. A mesma variedade do almoço. Brinca um pouco com as filhas. Se prepara para o trabalho.
22h – Sai de casa para o terminal. O expediente começa às 23h. Da parada de sua até o terminal, demoram-se em média 30 min.

Curiosidades:
Luiz mora no Jangurussu, zona sul de Fortaleza, numa rua chamada Paraíso. Nas proximidades de sua casa, há três cabarés, os quais ele costuma freqüentar com o irmão e um grande amigo, ambos vizinhos. Joelma às vezes se chateia e até chora por conta da situação. Mas aceita, porque é assim mesmo. Com a soma dos salários dos dois, eles tiram por mês R$ 600,00. Com esse dinheiro, eles dizem viver muito bem.

Última frase:
Luiz varre e junta, diariamente, vários sacos de lixo e os deposita no maior depósito do terminal, mas ele não sabe qual é o destino do lixo.

4 Comentários

Anonymous Anônimo said...

eu gostei do texto, é diferente! Não sei se vale ou foje da proposta de vcs! Mas acho que seria tudo de bom conhecer a rua paraíso e conversar com a esposa, os filhos e filhas! Quem sabe ir até nos cabarés, ver como é! Pode ser interessante escrever a visão e impressão de vcs sobre os lugares que ele falou! não para confirmar ou desmentir, mas pra ver de outra forma, talvez!!!

8:41 PM  
Anonymous Anônimo said...

desculpa o erro! é foge e não foje! foi mal!

10:31 AM  
Blogger Diógenes said...

Legal esse negócio de viver muito bem com 600 conto, conheço muita gente q ganha dez vezes isso e não consegue dormir com a facilidade com q esse cara dorme, eu mesmo tou pra aprender.

Também achei legal a exposição sem reducionismos, vejo nessa reportagem um ser humano e não uma figura que pelo seu sofrimento e condição adversa é tratada como vítima da sociedade. Como se vê, ele mesmo ajuda a sustentar o que pressiona a todos, ir ao cabaré, cidade 190, estão expostas as fragilidades e virtudes próprias daqueles imersos na condição hu(rb)-m-ana.

11:39 AM  
Anonymous Anônimo said...

conhecer e sentir, olhar e ver, ouvir e dizer. Como é bom ver novas propostas, com gente de verdade, que sabe da dor da delícia de ser o que é.
Natercia Rocha

3:16 PM  

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