segunda-feira, março 13, 2006

Bossa nova ‘engaitada’

Raquel Gonçalves, em viagem a trabalho...
Quarta-feira de cinzas com direito a muito sol e sabor. Maluco Beleza não saiu nas ruas de Olinda, mas Geová tocou sua gaita no Passo Alfândega, nas ruas do Recife Antigo espalhando a boa melodia dos encantos da Bossa Nova.

Gaitista, artista, Geová. Idade? Não sei, por volta dos 60, talvez. Artista? Uma coisa é certa: os verdadeiros produtores de arte nunca se consideram artistas. A humildade e a intensidade com que essas pessoas se relacionam com o seu trabalho são as principais virtudes.

Casa do tio da namorada do meu amigo. Encontrava-me na casa de Geová. Com muito wisk na cabeça, ele estava bêbado. Voltando do Passo Alfândega, rememorava seus colegas mestres da Bossa Nova: Vinicius de Moraes e Tom Jobim. Dessa vez, trazia uma gaita nova raríssima, que havia ganhado de um amigo. Assistíamos a um DVD do Toquinho quando adentrou a sua sala. Falante, sugeriu uma fita com um documentário gravado na globo em 1994 (segundo ele, uma das poucas produções globais de qualidade) sobre a vida de seu companheiro amigo Antônio Carlos Jobim. Antes mesmo que respondêssemos, ele já tirou o DVD e introduziu a fita nostálgica, narrada por Cid Moreira ainda de cabelos grisalhos.

Muito emocionado e envolvido, tomou a cena deixando vir à tona as lembranças de um tempo que não volta mais e a angústia de ver que depois da morte, o conhecimento de Jobim é tão mal aproveitado e pouco reproduzido pelos seguidores e perpetuadores da arte. Mais de 200 versões de Garota de Ipanema. Pouco? “Ele fez muito mais que Garota de Ipanema e Águas de Março”, diz Geová enquanto coloca sua próxima dose de Wisk, agora trasbordando euforia, esparramado em seu sofá.

O cotidiano do velho é rememorar o tempo inteiro os tempos da Bossa Nova. “Eu vivi e acompanhei tudo isso de perto”. Foram três anos convivendo intensamente com Jobim no Rio de Janeiro. “Bebemos, cantamos, tocamos, conversamos juntos...” Cirrose: bar símbolo da boemia carioca acolheu e abençoou essa amizade poética, alcoólica e musical. Hoje aqui tocando na sua gaita, as lembranças musicais deixadas pelo amigo nos bares de Recife, sempre regado com muito wisk, é claro. “Nos bares sempre alguém pede alguma música dele.”

Geová: muito expansivo, não temeu ser inconveniente ou mesmo intolerante. Foi a cachaça? Tenho certeza que somente ela, não. Sua personalidade traduz muito mais que isso: intensidade. Pode até ser que alguns wisks já façam parte dessa construção pessoal, porém a atribuição de algumas características devem ser dadas a sua personalidade e não justificadas pela bebida. Em sua sala, onde encontrava-se sua sobrinha alagoana, o namorado e uma amiga cearense conversando e assistindo Toquinho ainda de ressaca em uma quarta-feira de cinzas, exteriorizou, transmitiu e contagiou a todos com sua musicalidade vital.

Vinicius de Moraes dizia assim:

“Se o cão é o melhor amigo do homem
O wisk é um cão engarrafado”