quinta-feira, março 16, 2006

Seu Alves, o sapateiro.

texto e fotos: Pedro Rocha.

“Ei menino. Leva esse bilhete na casa do Zé Pereira que na volta eu te dou um pedaço de rapadura e uma mão chêa de farinha...” Honorato era menino véi, coisa de 8, 9 anos. Saiu rodando Flecherinha na cata do destinatário. “Né aqui não viu... É bem ali” E tome Honorato a andar debaixo do sol quente, o suor descendo e da pueira da piçarra subindo, indo e voltando feito besta , “ta bem pertim...”, e mais um apontava tangendo Honorato. Na porta da casa de uma senhora de idade é que o bilhete chega ao dono: “Meu filho, vá simbora pra casa que aqui tá escrito: ‘bote esse burro pra andar’.”

Honorato Alves Pereira nasceu 1930 em Tauá (349 km de Fortaleza), mas ainda nos braços da dona Maria chegou em Flecherinha, onde passou infância. Menino aperriado, com 12 já tava em Fortaleza, no ofício de engraxar sapato. Aperriado é pouco, dizem por aqui que essas pessoas têm um frivião no cú, e é bem capaz dele aos 76 anos se espalhar numa risada quando ouvir isso. Com 20 e poucos, tava no Rio de Janeiro, trabalhando no Aeroporto Santos Dumont, pra mais na frente tá carregando peso na tal da Brasília de Kubitschek, o JK. Goiânia, Anápolis, Fortaleza – só de passagem! – sobe! que o pau de arara tá saindo, Rio Grande do Norte, Pernambuco, Bahia, Minas, construção civil, ajudante de topógrafo, na roça plantando feijão, arroz, milho... Pra depois voltar fastiado, porque “quem anda só no mundo não tem valor.” Saudade da mãe. 1962.

Ali sentado na calçada, passando cola no solado, costurando bico, remendando uma sandália, pitando outra, Seu Alves, o sapateiro, conta os anos que se passaram. Toim, filho mais novo e herdeiro do ofício do pai, avisa: “rapaz, você vai dormir, acordar, e ele ainda ta falando.” Deboche de filho. De história em história, virou reportagem, dessas de televisão, jornal, rádio, até a tv a cabo, mas essa ele não assistiu, “é tv de gente rica.” Mas não foi o navio clandestino que fez ele virar reportagem. O navio que pegou pro Rio, onde escapou fedendo de uma baldeação. “Num sabe o que é? Era quando os homi iam checar de um por um quem tava clandestino no navio.” Pois nessa, ficou na terra mesmo, nem tentou subir de novo. Ouviu das margens de Recife o navio apitando rumo a capital do Brasil daqueles tempos.

Não foi o navio, nem foi o pandeiro tocado nos forrós ou as tantas mulheres em que ele “passou o pavil”. O que fez Seu Alves, o sapateiro, reportagem, foi a arrumação de sair pintando a calçada do seu ponto, ali na beirada da Av. Engenheiro Santana Junior, perto do Terminal de ônibus do Papicu. É “Feliz Natal!”, “Feliz Ano Novo”, declaração de amor: “ti-amo mãe”, poesia: “Este... domingo é meu: ti-amo”, pregação: “A porta que Deus abre ninguém fecha.”. “Seu Alves, amigo do pobre, conhecido do rico”. Mas quando a Cherokee pára do lado ele sabe, o preço vai ser maior um pouquinho.

Explica o ocorrido. Fala que quando chegou naquele ponto, há 12 anos, não tinha cliente, ai foi começando a pintar, colocar uns banquinhos, plantou esse castanhola onde estamos sob a sombra, ai foi indo... Começou a chegar cliente, mais um aqui, outro aculá. O certo é que o homem é notícia e não pára de chegar gente de pé ou no carro que encostar rapidinho pra deixar o serviço. Veio a prefeitura também, pra botar pra fora que não é coisa de se admitir a privatização de uma calçada pública!, mas um vereador que passava por lá, na intenção de recauchutar o calçado, resolveu os problemas.

“Traga o pandeiro”. Magnaldo, que tá aprendendo a transformar sapato velho em novo, corre na casa do seu Alves, ali pertinho, na Travessa Paredes, pra buscar o instrumento. Mal chega a morena com o cabresto da sandalha rebentado, ele já vai se aprumando, mete a mão no pandeiro, galanteador, malaca... Canta Morena Dengosa de Roberto da Silva.

Quando começa a cantar, ele encarrilha uma, duas, três músicas. Alegre, canta pra quem passa indiferente na avenida. Sem problemas, o que vale é ele o pandeiro... a morena... quando tá triste é isso que faz pra consolar.

De mulher e música ele entende, pelo menos é o que diz. É bruto, “minhas mulher é tipo táxi, eu pego e mando sair fora.” Mas na verdade é muito é mole., “música que esculhamba mulher eu não gosto não, dô valô a música que baba mulher”. Sem falar nos 19 anos e 10 filhos que ele passou rodando no táxi da dona Francisca Ferreira Alves, mãe do Toim. Pra ficar com a comparação dele.

O burro rodou anos, aprendeu a ler e escrever ainda no Rio, na sua passagem por lá. O bilhete? Na época, um envelope pelo correio com um tanto de C$ cruzeiros pra mãe. “A letra é uma comunicação oculta sabe. O caba pode ser calado, falar nada, mas escrevendo ele diz o que quer”. Não fale muito não seu Alves, que é capaz de um dia o senhor encontrar um rapaz bem parecido, de paletó e sapato impecável, querendo carregar o senhor pra ir dar palestra de marketing pelo mundo. Olha que o senhor já tem 76, não ta mais em tempo ficar com essas putarias.

* mais fotos

2 Comentários

Blogger Henrique Araújo said...

Ótima matéria/crônica/causo, seja lá o que isso for mesmo. De resto, pouco interessa, né?!

9:51 AM  
Anonymous Anônimo said...

Pedro
Conheço o Eduardo. Não te conheço mas faço questão de comentar. Sinta-se parabenizado. Sempre quis saber sobre seu alves. Agucei minha curiosidade.
Valeu.

10:26 PM  

Postar um comentário

<< Home