quarta-feira, março 22, 2006

Eu e o Bom Jardim

Entre os meus 13 e 15 anos eu morei no Bom Jardim, uma época em que minha mãe ficou desempregada e se obrigou a baixar o nosso "estilo de vida". Foi uma época muito importante pra mim, pois foi o tempo em que eu mais fiz amigos próximos da minha casa. Toda noite nos encontrávamos na esquina pra conversar, mesmo com os pedidos de minha mãe. Eles foram muito importantes pra mim, mas perdi completamente o contato desde que me mudei. Hoje decidi visitá-los.

Ramon Cavalcante

21 de março de 2006, 18 horas, quase seis anos depois...

"O Eugênio taí?" a menina ficou desconfiava, não lembrava que ele tinha uma irmã, não respondeu, gaguejou tudo que me mostrou foi sua silhueta por trás das portinholas. "Ele não chegou ainda não" veio a mãe por trás, vindo da rua, respondendo por sua filha.
- A senhora lembra de mim?
- Lembro sim
- E o Eugênio? Sabe onde ele tá?
- Não voltou do trabalho ainda- Ah, ele tá trabalhando?- Tá, no juizado móvel. Tá quase casado. Deixe o seu telefone e o endereço que agora ele tem uma motinha, é bem capaz de ir bater lá...
O Eugênio foi o meu melhor amigo daqui, meio pra baixo, meio desiludido, mas sempre foi um companheiro. Lembro das palavras dele no dia em que me mudei: "É meu chapa, só vai se for assim, isso aqui é um inferno, ninguém cresce aqui dentro não, agora bastou o cara sair, se mudar, pronto, arranja emprego, uma namorada que preste". No dia achei muito exagerado, mas voltando lá depois de tanto tempo eu vejo o quanto ele acertou. Ainda lembro dos olhos dele... os olhos de quem tava vendo tanta coisa errada que não tinha o que fazer, era se jogar pra dentro e tentar agüentar.
- O Dezim engravidou uma menina, taí o filho nasceu, a mulher passa o dia trabalhando de costureira e ele aí sentado jogando dominó, num quer nada, trabalhou uns tempos de trocador, mas essas coisas têm que ter pontualidade. – meu primo Alexandre começou a apontar com um gesto e duas frases o rumo que cada um tomou.
- Tão morando onde?
- Ali por trás do canal, rapaz ali o negócio é pesado viu... faz pena
- Como é o nome mesmo daquele bicho alí que montou um salão?
- Naim. Tá se fazendo, montou aí esse salão e daí já fez uma moto, tá terminando a casa... só que aí começou a aparecer um monte de salão por perto...
- E o Cícero cadê?- Rapaz... o Cícero tá um caso sério... desde a história lá do pai dele...
- Sim como é que foi essa história do pai dele?
- Macho um tio dele tava marcado de morte por uns marginais aí, no dia o pai dele tava andando com o tio aí já era, os caras pegaram os dois e foi sem pena... dois tiro na cara... queima de arquivo né? Fui com o Nathan nos hospitais tudim fomos achar lá no IJF, fazia uma meia hora que tinha morrido... os dois tiros foram no olho, o primeiro entrou e ficou alojado... o segundo bateu no primeiro e espatifou o cérebro por dentro...
- E quem é que sustenta a mãe e as irmãs agora? Só o Nathan?
- De vez em quando o Cícero arranja um emprego, mas aí dá uma doida, passa uma semana bebendo, falta, sai quebrando tudo dentro de casa... quem ainda discola uns serviços pra ele, por consideração ao pai, é a galera da padaria aí. Mas eles ainda tão recebendo uma aposentadoria aí que o pai dele tinha.
- E o Chiquim? Vai casar mesmo?
- Rapaz....
A história vai longe. Vou conhecer o filho do Dezim, procuro o Cícero, a mãe diz que ta pelos bares. É estranho imaginar sem ver seu rosto, ele era um dos caras mais centrados de nós... talvez tenha sido exatamente isso. Eduardo cuidando do irmão, matando frango e agora indo pros forrós, Walney desenhando, desenhando bem. Gabriel nunca descolou do vídeo-game, Jacinto desempregado, só ajudando o pai... e assim vai. Meu primo me dá uma carona de volta, quando percebe o meu interesse pelo rumo que a nossa galera tomou fala "É, por aqui as coisas não mudam muito não, vai assim mesmo, parece que parou no tempo".
Saio de lá com o peito pesado. Aquela esquina vazia, nenhum menino de 16 anos, nenhuma roda de amigos. Não consigo esquecer o olhar do Eugênio - É meu chapa, só vai se for assim, isso aqui é um inferno, ninguém cresce aqui dentro não, agora bastou o cara sair, se mudar, pronto, arranja emprego, uma namorada que preste... isso aqui parece uma doença, se vacilar e ficar de lero aqui na calçada passa um doido pra assaltar e tome bala... – quase não consegui escrever esse texto... só consegui depois de me voltar aquela imagem, aquela de todos nós na esquina, todo dia conversando, jogando conversa fora. Refletindo agora de fora eu vejo que talvez as coisas não tenham piorado lá nesses seis anos (apesar de não ter melhorado em nada), o problema é que nós crescemos, chegamos aos 23, 24, 27, quando o peso cai em cima de nós... e como esse peso é grande.

4 Comentários

Anonymous Anônimo said...

caralho meu chapa. É texto pra ficar calado.

9:37 AM  
Blogger Henrique Araújo said...

Gostei bastante do texto, Ramon. Espero que, futuramente, possamos fazer qualquer coisa assim.

Abraços.

5:11 PM  
Anonymous Anônimo said...

De repente me senti desprotegido e ao mesmo tempo privilegiado... Ramon, você escreve muito parecido com o Gabriel Garcia Marquèz: angustiante.

4:56 PM  
Anonymous Anônimo said...

Ramon... esse texto não saiu dos dedos naum...foi fundo, viu?
Ps: Pedro, Raquel e cia...tenho acompanhado os textos sempre.

10:43 PM  

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