quinta-feira, março 23, 2006

Conversa de Jardim

texto e foto: Tiago Coutinho
Ela já estava lá, mexia em alguns detalhes seu jardim. Naquela manhã, as flores não estavam expostas sobre uma pequena mesa, apenas alguns arranjos perdidos. Os imensos ursos de pelúcia hibernavam recolhidos no lado de dentro da casa. O duende, como sempre, apontava para o alto. As letras orientais penduravam-se na parede, assim como as imagens do japonês. A dama de preto e ereta, mais tarde soube ser o símbolo de uma bruxa, dividia, hoje, as atenções com a face esbelta de uma garota do cabelo azul. Esta eu nunca tinha visto por ali.
- Oi, bom dia! A senhora é a Dona Lúcia?
- Sou. E você é o rapaz que já veio aqui duas vezes e não conseguiu falar comigo.
- Exato.
Estava descalça. Vestia um vestido na mescla entre o preto e o vermelho. Cada orelha carregava dois brincos. Não largava a carteira de cigarros. Foram cerca de seis em menos de uma hora de conversa.
- O que você quer mesmo saber?
- Queria entender a arrumação do seu jardim. Sempre passo aqui e vejo esses bonecos e flores – disse meio que gaguejando.
- Me diga uma coisa... Você pretende fazer Comunicação?
- Sou estudante de Comunicação, tou terminando.
- E como é que você quer ser jornalista, falando inseguro. Você tem uma preguiça mental, já percebi. Tem que trabalhar isso.
Começou então a confusão: seria eu ou ela o assunto da conversa?


Lúcia Regynn. O primeiro nome vem do batismo. O segundo, por determinação da numerologia. Já vive nessa encarnação e no corpo presente há 44 anos. Desde os sete, quando os portais se abrem para um ser humano, já manifestava diferenças. Nessa idade, parou de falar – hoje, parece tirar o atraso. Sentia dores de cabeça muito fortes. Quando brincava de baralho, ao invés de ver números, lia as histórias das mães de suas colegas. Ouvia vozes. Parecia normal. Mas os outros não possuíam as mesmas habilidades.
Depois da falta de voz, ela passou por três mortes clínicas, no início da adolescência. A medicina não conseguiu explicar o fenômeno. Decidiu estudar, ela mesma, a alma humana e compreender as suas complexidades.
Guiada pelas energias cósmicas e pelas forças das vibrações – ela não consegue explicar –, Lúcia arruma seu jardim diariamente de forma diferente. Deixa os objetos artesanais expostos para rua. O que haveria por traz daquilo que para mim seriam meros enfeites? Seria um bazar? Não obtive as respostas. Falou vagamente dos objetos.
Tinham uma razão de estarem ali ser. Concentram energias para o mundo externo de sua casa. Cada elemento possui simbologias. Mas as explicações não me convenciam. As flores fecham o ciclo da morte, os ursos remetem a infância, a bruxa negra à condição eremita, a boneca de azul a nostalgia, os coelhos a prosperidade.
A conversa decepcionava. Ela tinha receio de abrir o jogo mesmo. Não abriu a porta da casa. Possivelmente, teria mais relatos. Ela representava para um jornalista. Tentei conversar mais sobre sua vida. Ela desviava o rumo. Ao invés de responder, questionava-me. Eu insistia. Ela repetia as informações. Estava perdido. Minha materia sobre o jardim morria. Até que.
- Como é mesmo o seu nome?
- Tiago.
- Tiago... Me diga uma coisa.. Quando você se olha no espelho, o que você vê em você que não gosta?
- Não costumo me olhar no espelho. Apenas o uso para coisas práticas, tipo, escovar os dentes, tirar a barba.
- Por que você não gosta?
- Não sei.
- Esse seu “não sei” é revelador. Você não quer enxergar seus problemas... Vamos lá. Bote aí a data de seu nascimento nesse caderno.
- Certo. – escrevi em letras garrafais 14/11/1984.
- Vamos... Me dê aqui o caderno...

A crônica de quando o repórter se sente desarmado

De repente, ela fazia as perguntas. Perguntou sobre minha vida. Dos números do meu aniversário, fazia milhões de questionamentos. Não me sentia confortável. Ela tinha em mãos minhas armas: o caderno e a caneta. Anotava palavras sobre mim. Exatamente como costumo fazer.
Lembrava do meu julgamento ao considerar que ela escondia informações para mim. Eu tentava esconder um pouco da minha vida. Como anda sua teimosia? Você se acha covarde? Eu ia respondendo. Ela tecia idéias a respeito da minha personalidade. Com muita propriedade, afirmou besteiras, mas apresentou questões verdadeiras. Disse que sou inconstante, que a rotina me assusta, que um trabalho burocrático para mim seria uma tormenta. Ao mesmo tempo, possuía um lado que exige de mim independência financeira e autonomia familiar.
- Esse dilema te assusta. Você carrega consigo nessa encarnação uma covardia intensa. Mas há um lado aventureiro, eu diria quase doido. Mas só tem coragem de topar as próprias loucuras, quando encontra alguém... Até o momento vem dando certo, mas vai chegar um momento em que suas loucuras serão tão complexas que você se encontrará sozinho e precisará trabalhar a covardia.
Traçou minha personalidade. Fez mais perguntas. Teceu comentários... Quando ela dizia “me diga uma coisa...”, eu me temia o que vinha depois. Eu teria coragem de responder tudo? Não sei. Ela dizia que o 84 me trazia vários problemas. Viajo e penso se todos os meus amigos nascidos nesses anos são problemáticos? Não sei. O mesmo 84 exigia de mim a objetividade, a organização e conflitava com o 14. Você tem o espírito aventureiro, mas um medo muito grande.
Terminou a conversa. Ela quem me conduzia agora. Marcou o horário das fotos e disse que talvez eu não a veria com constância, apesar de quase nunca sair de casa. “Nem sempre você poderá entrar na minha casa e falar comigo. Algumas vezes, eu não deixarei”, diz num tom de mistério. De fato, a noite, quando voltei para fotografar, ela não estava lá. Por fim, disse-me para observar meu guarda-roupa e comparar com a minha mente. A organização do guarda-roupa se assemelha a das nossas idéias. Chego a minha casa, vejo meu guarda roupa: uma bagunça, como sempre. Minhas idéias também.

7 Comentários

Anonymous Anônimo said...

dá pra tu deixar de ser um pouquinho menos maravilhoso, ou não?

um beijo grande pra ti, saudades

10:00 PM  
Anonymous Anônimo said...

gostei dessa viagem toda aqui... só acho q vcs deviam falar mais sobre sexo e drogas.

3:21 AM  
Anonymous Anônimo said...

ei moço, belo texto!
Fui olhar meu armário e... como minha cabeça é terrivelmente bagunçada! Escreverei sobre isso.

bju graaande.
ah, e amanha te mando o telefone do radamés.

6:59 PM  
Anonymous Anônimo said...

o comentário ai a cima foi excluído pelo próprio autor do comentário viu. Pra ficar claro que não estamos censurando comentários né.

12:36 PM  
Blogger JanAyde said...

é tão bom ler um texto e se encontrar dentro dele

11:06 AM  
Blogger Gina Emanuela said...

Puxa Tiago...que texto interessante, e que situação interessante. Que inveja; e que alívio.

4:24 PM  
Anonymous Anônimo said...

Lucia Regynn passou por mais dois desafios depois desse encontro. Em 2007 teve um AVC hemorrágico, conseguindo após 6 meses recobrar completamente consciência e motricidade.
Em 2009, teve sua filha levada para planos espirituais;

Hoje ela está recuperada de ambas as provações e voltou aos tempos áureos de taróloga e numeróloga.

Thiago, ela lembra de você. Se desejar entrar em contato, segue número:
(85)8402.2199

2:24 PM  

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