quarta-feira, outubro 11, 2006

O avesso do farol


Texto: Henrique Araújo

“Farol é fruto de uma decisão política afinada com a criação de instrumentos que possibilitem o encontro de diferentes grupos sociais e territoriais. Projeta-se sobre a cidade polifônica, lugar da humanidade plena, do cruzamento de distintos espaços e tempos, da troca de narrativas que dão sentido à vida e das inúmeras formas de reinventá-la”. E por aí vai...


À guisa de lead (ou parágrafo introdutório contendo as informações mais relevantes para o leitor)

Lançada pela Prefeitura Municipal de Fortaleza no começo de outubro, a revista Farol tenciona, segundo entrevistas que pipocaram, paradoxalmente, nos cadernos de cultura dos principais jornais da cidade, fazer incidir seu cone de luz sobre essa zona em penumbra que é a periferia de Fortaleza e demais grotões de miséria encravados nas chamadas “áreas nobres”. Não uma luz permeada de néon. Absolutamente. A luz a que se propõe Farol é de natureza diversa. São cinqüenta páginas de texto e imagens belíssimos. Publicação bimestral e gratuita, seus mais de 20 mil exemplares deverão alcançar, por força da mobilização das comunidades, os mais variados rincões de Fortaleza. De sua leitura, um alento. Exceto quando os textos enveredam, aqui e ali, por caminhos estilística e semanticamente cor-de-rosa, motivados pela busca desenfreada em captar a tal da “alma encantadora das ruas”. É quando percebemos o calcanhar de Aquiles do jornalismo, muitas vezes, raso de reflexões e exageradamente preocupado em humanizar, textualmente, os personagens que retrata.

No mais, ânimo para estudantes de jornalismo. Quero crer que sim, que a revisa representa a possibilidade de uma outra prática jornalística, mesmo limitada à meia-dúzia de pressupostos.

Esqueci de responder alguma questão seminal?


Aqui tem início o texto propriamente dito

Tem gente que faz isto: pára e pensa no sentido das coisas, para que servem, como nasceram. Diante da revista, matutei: farol serve pra quê? Acertou quem respondeu orientar, dar sentido de direção, etc. A revista também cumpre esse papel, mas não apenas isso. Afinal, onde podemos encontrar o tal farol? Defronte ao mar, à faixa litorânea, mesmo que, com o passar das eras, tenha perdido importância, tornando-se anacrônico. Daí, veio a conclusão: Farol desvirtua o farol, construção cuja razão de ser é orientar a navegação no mar. A resposta é, a bem dizer, ordinária: ao invés de se voltar para a faixa litorânea – a faixa que, bem-entendido, amiúde ocupa os espaços nos meios de comunicação –, Farol projeta seu cone de luz Fortaleza adentro, iluminando-a e, dessa forma, trazendo à baila a periferia da cidade. Farol bizarro, mas necessário. É o que dizem; e eu confirmo.

Noite de lançamento no entorno do Farol do Mucuripe. Farol Velho, diga-se. Comunidade presente, participante. No palco, mistura boa: capoeira, rap e o cancioneiro popular encarnado na Caninha Verde, presente igualmente nas páginas da revista. A gente chega, aproxima-se. Ao fundo, uma massa líquida clareada pela noite de lua. Sobre nossas cabeças, o farol. Nas mãos de moleques brincantes, revistas. Algumas amarrotadas feito qualquer papel.

O andar no meio de tantas pessoas favorece o surgimento de alguns pensamentos. A cidade, a relação com a cidade, é a mesma que se tem com as gentes: dia a dia, azeita-se, estreita-se. Ou, pelo contrário, deteriora-se, até alcançar a ruptura. Assim tem sido. Nunca tinha ido ao farol novo – muito menos ao velho, onde estávamos agora. Surpreso, gostosamente surpreso. É bonito, imponente até. Nova iluminação, as sombras dos meninos e meninas projetada contra os muros do farol. Quem viu isso? Eleuda de Carvalho. Ao lado, escutei. A dobra no olhar, é o que Eleuda sempre busca. E acha.

Revista em punho, após alguns minutos, vamos embora. A vontade de ler é maior. Um pouco invejosos, confesso. Mas inveja boa, se é que há.

Horas depois, no conforto de casa. Abro a revista novamente. Nas páginas, o areial do campo do América. Não apenas o campo, mas o que viceja no entorno, nas casinhas caiadas cujo sossego interior é freqüentemente invadido por... bolas. Dessas de couro com parte dos interstícios emergindo entre as costuras.

Ainda no campo, uma foto destaca-se – ou eu a destaco entre as demais: dois meninos assistem à partida entre o Azul e o Vermelho, final de campeonato. Os times arranjados ali mesmo na comunidade. No centro do campinho, dão início à peleja com um toque na bola. Ao fundo, encostado a uma das traves, um vira-latas ergue a perna traseira direita e, sem-cerimônia, espirra o seu jato de urina.

A menina, ao fim da revista, sorri encantada com algo que nos escapa. Entretida com o milho, espraia os dentes muito brancos. A boca é toda bagaço de milho verde cozido.

“Farol quer contar histórias de vida atemporais, operar com um conceito de cultura ligado à vida e não apenas às manifestações artísticas consagradas, apostar na volta da grande reportagem feita de narrativas”.

Entre os dois instantes flagrados por fotógrafos de Farol, muita coisa a rolar: o Passeio Público por ele mesmo – a repórter faz as vezes de Chico Xavier e, incorporando o lugar, deixa às claras o que lá sucede. O logradouro emerge, portanto, cheio de vida das páginas. O mesmo acontece com a Comunidade das Quadras e os personagens nela implicados; idem com o bairro do Mucuripe, seus pescadores, suas histórias, suas mulheres. E tantas outras narrativas, histórias que não sabemos porque ninguém se interessou em contar.

“Quem faz a revista acredita, assim como o escritor Ítalo Calvino, que as palavras têm que lutar sem descanso contra a dureza e impermeabilidade da paisagem urbana e que cabe a elas retirar peso do mundo, construindo imagens de leveza”.

Farol busca, grosso modo, “desafinar o coro dos contentes”. Ou, por outra, afinar o dos descontentes, enfeixando-os e contribuindo para o bom-funcionamento da engrenagem dos movimentos sociais. (Mais outras tantas coisas que não falo por preguiça).

8 Comentários

Anonymous Anônimo said...

Texto excelente. Apesar de ter apenas folheado a revista, senti de fato que a luz que Farol é iluminar o belo que está na penumbra, não enfeitá-lo pornograficamente com luzes de neon.
Forte abraço.

8:54 PM  
Anonymous Anônimo said...

......
é grande, esse texto, né....?!

8:55 PM  
Blogger Henrique Araújo said...

é grande, sim, marília. o problema é quando, além de ser grande, é chato. seria o caso? tem que ler pra dizer...

diógenes, meu filho, saudade dos seus comentários aqui no blog.

abraços.

10:24 AM  
Anonymous Anônimo said...

Meu querido, belo retrato da revista, do objetivo e do próprio Farol... Bom demais tê-lo conosco.
Adorei "o espirra seu jato de urina". Isso fala mutio. Parece que já vem casado com a imagem.

9:39 PM  
Anonymous Anônimo said...

brigadão!

12:29 PM  
Anonymous Anônimo said...

preguiça...=( me desculpa....=/
só um parêntesis...ninguem vai postar nada sobre o edital da funcet nao?!?! puxa vida, minha gente..afinal ces tao de parabens pela otima ideia reconhecida...!!!=)
merecia nem que fosse só uma notinha de rodapé!=D

1:26 PM  
Anonymous Anônimo said...

pronto: o pedro resolveu o problema. nada de tanta aflição...

9:52 PM  
Anonymous Anônimo said...

Tô doida pra ler essa Farol. Tô doida pra conhecer mais revistas com a nossa cara, sem os traquejos enferrujados do Sudeste que monopolizam essa mídia. A Farol dá esperanças mesmo.

Parece que já saiu a segunda edição, né? É correr atrás das duas agora!

11:10 PM  

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