A todos que 'mariscam' sonhos
Um produto maturado pelo grupo
e produzido pela sede do corpo feminino Tr.e.m.a.
Talvez funcione
o teaser publicitário
Na cautela de seus passos
Seguimos rumo ao desconhecido,
Passamos por lamas e lixo
Chegamos nós ao ventre da fatídica imutável realidade?
O mangue vive dentro desse seio indígena
Por Raquel Gonçalves
Em uma de nossas tentativas de planejamento, devaneios, surtos burocrático e anseios o grupo Tr.e.m.a. pensou em explorar, inicialmente, a macro temática do mangue e a relação de sua biodiversidade com os seres humanos e com urbano. Daí surgiu a idéia da vivência com as marisqueiras da comunidade indígena Tapeba, na Caucaia. O trabalho com a temática acabou se perdendo imerso em tantos projetos que o grupo tentou abarcar, porém a idéia da vivência com essas mulheres não saiu da nossa cabeça desde o dia em que nos decidimos por abraçar esta causa. As marisqueiras viraram pauta. E ai fomos nós, Angélica e eu, com um pretexto de fazer uma grande reportagem, em busca de um novo mundo que nos era desconhecido.
O resultado no papel não consegue transmitir os momentos reais em que estivemos em contato com essas mulheres, mas tentam remontar as suas vidas fazendo-as falar por si só de seus desejos, problemas, sonhos, anseios e medos mostrando muito além da função que desempenham.
A nossa preocupação com a naturalidade, com o não-direcionamento dos encontros, dos diálogos nos acompanharam em todas as visitas. A identificação de “jornalistas/pesquisadoras” ainda demonstra uma barreira a ser superada em muitas e muitas entrevistas e contatos que ainda virão pela frente... Mas acredito que seja possível adquirir essa naturalidade da relação que surge com esses novos contatos, mesmo com essa identificação inicialmente assombrosa. A comunicação ‘forçada e forjada’ nos entristece, principalmente quando percebemos que existe tanto isso dentro do jornalismo. Vamos tentando burlar.
Das impressões primeiras... estranhamento e curiosidade. Constatações: miséria e perrengue. Mulheres que antes tinham a sustentabilidade do mangue e viviam somente da mariscagem, hoje se mostram desapontada com o rendimento da atividade. Elas buscam alternativas e encontram várias formas de ir tocando o barco. Da Maria Castoré, que abandonou a atividade por problemas no joelho, à “Maicon”, filho de quatro meses da adolescente/mulher Neguinha, 16 anos, o mangue vive em todos que por ele passam, partilhando sonhos e dores nesse espaço ambíguo de (des)harmonia.
Capítulo 1: Entre lama, mariscos e conversas.
A vista do Centro Cultural causa uma ilusão. Quando se avista a oca, acredita-se o que vai se encontrar são os estereótipos indígenas: pessoas nuas ou pouco vestidas, de cocá, arco e flecha em suas casas de palha onde vivem várias famílias, vivendo em comunidade, onde tudo é de todos. O de todos para os índios, em Caucaia, município da Região Metropolitana de Fortaleza, é, na verdade, muito pouco. O extrativismo permanece, mas o arco e a flecha, que talvez nunca tenha existido nessa região, dão lugar ao fojo e a rede. As casas de tijolo cru, doadas pelo antigo prefeito, o Domingão, logo frustram quem esperava encontrar atrações exóticas. São iguais as de muitas famílias “brancas”. Não têm saneamento e os “gatos” levam luz. “A gente já chamou a Coelce, ninguém vem, o jeito que a gente encontrou foi esse”, explica Raimunda Teixeira, índia de 62 anos, oito filhos, 30 netos e 20 bisnetos. A simpática senhora hoje é funcionária pública no Posto de Saúde Vítor Tapeba, que atende a comunidade indígena às quartas-feiras. Mas até bem pouco tempo Raimunda era Marisqueira. Gosta tanto da antiga profissão que de fez em quando ainda vai ao mangue colher seus mariscos. “Mas vocês procuram uma que ainda cata o caranguejo, né? Está aí a minha neta, Maria do Carmo”.
Acompanham-nos até o mangue Neguinha, Francisca de Batismo, de 17 anos, índia de pele morena marcada pelos os traços Tapeba, olhos cor de mel e cabelos assanhados. Nos braços, o filho Michael (lê-se Maicon) um mês mais jovem que o Ivo. Irmã e sobrinho de Do Carmo “Eu queria que o nome dele fosse um nome indígena, mas a minha sogra jogou uma praga. Disse que se o nome dele não fosse Maicon, ele ia morrer. Maicon quer dizer Michael”, conta a mãe orgulhosa. Sempre que pesca, Neguinha carrega o Michael. Não o deixa com outros em casa de jeito nenhum! Nem com a mãe, nem com a sogra. Às vezes com o marido. Para onde vai leva o menino gordinho e corado, tudo pelo leite materno. Mas não é por ciúmes do filho que Neguinha não o larga. Ela, na verdade, teme que a Caipora leve o menino. Isso mesmo, o ser folclórico fumante e de assobio alto e fino. Neguinha jura que, quando a mãe estava grávida dela, a caipora deu-lhe uma carreira e só escapou porque entrou em casa. “Ela quer levar embora menino dentro e fora da barriga”.
A conversa se desenrola na uma hora de caminhada até o outro lado da margem do rio, onde Do Carmo considera o melhor para a pesca. No caminho, o cheiro forte do mangue vai se intensificando à medida que se adentra. A lama cobre toda a canela, se entranha nas unhas. Maria do Carmo, à frente, mostra toda a intimidade com o lugar. Sigo devagar, com receio do cheiro forte, os pedaços de pau que ferem o pé, dos respingos do barro gerado sobre as cochas e os braços. Uma infinidade de mariscos cruza o caminho. São siris, caranguejos e o curioso mão-no-olho, que parece com o caranguejo, embora menor, e tem uma enorme pata que cobre metade do que seria o rosto. Tivemos uma verdadeira aula de a céu aberto. “Tá vendo esse bicho aí? É a Maria Farofa, se você comer você fica bebinha”, explica Do Carmo. A matéria prima para a feitoria do artesanato estava ali, por toda parte: sementes, folhas, palha. “É com essa planta aqui que a gente faz o cocar e a saia do índio, ela chama ‘Ôi de Paia’, continua Neguinha.
Atoleiro na lama do mangue, água na metade da canela, espaços vazios, sem vegetação pela antiga salina, escombros de velhas casas Tapeba. “Ta vendo esse descampado aqui? Às vezes a nossa tribo vem dançar o Toré aqui, bem próximo da natureza. Eu adoro”, conta Do Carmo. Finalmente o rio. De longe, a vegetação do mangue, com suas plantas tortas, raízes à mostra. De perto, a imundície. Uma grande quantidade de lixo se amontoa na margem. Uma espécie de cemitério de chinelos, claro, sem os pares. Sacos plásticos, garrafas, roupas velhas e tudo mais que se possa imaginar. Para nossa surpresa, um copo do Mac Donald’s. Reflexo da ação de vários anos, da própria comunidade. O lixo, às vezes os índios queimam, às vezes jogam no rio.
Na chegada, Maria do Carmo arruma cuidadosamente as armadilhas. Um pouco distante de nós. Os caranguejos se assustam com os homens. O próximo passo é catar as pixuletas. Hein? Mariscos compridos, acinzentados, com duas conchas que protegem o animal dentro. Com a ajuda de uma canoa se chega à croa, banco de areia, seco pelo esvaziar do rio. As pixuletas são rápidas. Maria do Carmo tem agilidade, com uma pá corta a terra até ver os buraquinhos feitas pelo caminho dos mariscos. Enfia a mão e puxa o bicho gosmento, que rapidamente entra na sua proteção.
As duas aprenderam a pescar com a mãe, Neide, filha da índia Raimunda. “Minha mãe trazia a gente pequenininha pra ensinar a catar o caranguejo”, conta Do Carmo. O pai? Morreu de cirrose. A rotina dela inclui, além da pesca e da feitura dos colares, as aulas do supletivo do primeiro grau, na escola da comunidade. “Eu gosto de ser tapeba. Mesmo que pudesse, não sairia daqui não”.
A intimidade delas com o lugar nos dá inveja. Elas permanecem no trabalho e continuam cuidadosamente, a zelar pelo que já foi pescado. Alguns Aratus já passeiam no fundo do balde perdidos entre nossas peças de roupas que ocupavam o mesmo espaço dos crustáceos ainda vivos. Como num desabafar Do Carmo diz “Por mim eu morava aqui, no meio dos matos. Sozinha eu não tinha coragem não, mas assim... Se viessem umas três casinhas eu tinha. Lá onde moro (Vila da Ponte) é muita zoada, fica perto da pista e as vezes tem muita briga por lá”. Uma faculdade? “Pode ser, a que estudasse a pesca”.
Enquanto pesca no rio, Do Carmo sonha com o mar. “Nunca fui à praia, já vi o mar de dentro do rio das Barra, quando vou pescar de barco, mas a praia mesmo, não sei nem como é”. Um estalo. “Eita, o fojo bateu!”, avisa Do Carmo. A zoada do pau batendo na lata confirma que algum ser caiu na arapulca. E pode ser qualquer coisa, não é só caranguejo não. Até rato Maria do Carmo já pegou.
Neguinha me espera no caminho de volta. O lameiro, o cheiro forte. A conversa se desenrola ao som do rinchado de catarro de Michael e dos galhos quebrados pelos pés que insistem em passar por ali. Neguinha confessa que sua condição indígena não traz tanto orgulho assim. “As pessoas ficam fazendo hora, chamando nós de índio, perguntando pelo arco e flecha ou então gritam assim: cuidado com as fechas. Eu não gosto. Quando me perguntam se eu sou Tapeba, eu minto, digo que não sou”. “Ela já furou o marido com uma faca”, cochicha Do Carmo. O motivo? Ele não quer que Neguinha saia de casa, quando ela sai, a briga está feita. “Ele quis me bater e eu meti faca nele”, confirma corajosamente. Quando o assunto é namorados, a agora falante Do Carmo desconversa. Volta a ser monossilábica. Quem sabe na próxima visita.
3 Comentários
Olá Angel.. vc está escrevendo muito bem. Desde que nos conhecemos quando vc me disse que ia fazer jornalismo sabia que ia ter um futuro brilhandte.
Continue escrevendo sempre, mais e mais.. te desejo todo sucesso do mundo..
Adorei teu texto (livro..rsrsrs)
sucesso minha querida!!!
O que acabei de ler não foi apenas um artigo, e sim uma verdadeira obra de arte. Fui transportado ao lugar e vivenciei cada momento através dessa linda narrativa, na qual, fiquei encantado.
Parabens Angélica!
Tenho muito orgulho de ser seu tio.
Kleber
É raro um texto me prender tanto. Já saiu em livro? Devia!
Postar um comentário
<< Home