terça-feira, setembro 04, 2007

Janelas e portas ficam abertas, deixando passar o forte cheiro empurrado pelos ventiladores à rua. Wellington e Helson afastam-se, com medo do formol respingar-lhes, ao mergulho do corpo número 4. Antes, conjuntamente, deitaram número 4 em uma maca branca de metal, já velha, correram-na pelo vasto piso branco do anfiteatro Saraiva Leão no Departamento de Morfologia da UFC, até chegarem ao tanque de formol disposto na extremidade do anfiteatro. Existem outros três tanques, um ao lado, outros dois na parede em frente. Os dois procederam assim com mais cinco corpos: número 1, número 2, número 3, número 5 e número 6. Todos corpos inteiros. Homens, velhos, magros – apenas um forte – com seus internos expostos. Serviram para aula de dissecação do professor Erivan.

No Serviço de Verificação de Óbitos (SVO), nove gavetas das quatro geladeiras esperam corpos abaixo de 20º negativos, por suas famílias. Suas características foram anunciadas em jornais e outros meios. O cadáver espera por 30 dias. Será dono do seu destino o parente de primeiro grau que reclamar o morto neste período. É ele quem irá autorizar ou não a necropsia do corpo. Sem pista da morte, a necropsia começará pelo cérebro, parte mais perecível do corpo, depois descerá todos os seus órgãos até encontrar a patologia. Sendo definida ou indefinida a causa do falecimento, o cadáver receberá seu primeiro e último documento póstumo: atestado de óbito. Agora, para o Estado, além de morto de fato, ele é um morto civil. Para o defunto, indiferente. Entretanto, o óbito à família será importante para algumas regalias: seguro de vida ou funerário. Com a documentação da morte do corpo, a família terá que optar pelo destino do cadáver: enterrá-lo ou doá-lo a alguma instituição de ensino. A maioria prefere enterrá-lo. Sendo quase 90% das famílias sobreviventes por mês com menos de um salário mínimo, o morto será enterrado em vala comum.

Se ninguém, em 30 dias, der conta da falta do morto, ele será da União. É uma espécie de “usucapião” de corpos. Esses cadáveres aleatoriamente terão a partir de então dois encaminhamentos: o sepultamento em vala comum ou qualquer instituição de ensino para servirem de material de estudo.

Wellington tem 43 anos. Fez curso no Senat (Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte) de Radiologia, depois estudou para a área de Enfermagem. Não agüentou a carreira. “Era muito duro conviver com a parte de pediatria do hospital.”. Estagiou nos finais de semana no IML para tentar concurso que acabou não conseguindo por chegar atrasado na prova. Acha melhor onde está agora, como técnico de anatomia e necropsia no Departamento de Morfologia da UFC. Com ressalva que no departamento não se faz necropsia. Em três meses de trabalho já tratou de seis corpos do SVO que receberam a segunda opção.

O companheiro de trabalho de Wellington, Helson, é formado em Veterinária. “A anatomia do ser humano é basicamente igual a dos animais.” Há dois anos e meio no trabalho do departamento, Helson nunca cuidou de uma mulher. “As mulheres têm mais vinculo familiar, por isto é difícil que não reclamem seu corpo no SVO”.

O corpo do SVO vem vestido e congelado. Alguns com blocos de gelo entre os membros. Em temperatura natural os técnicos esperam o descongelamento. Depois despem o cadáver e dão-lhe banho apenas com água. Em seguida cortam seus pêlos com navalha e, para os cabelos grandes, tesoura. Não existe rigor nisto, os corpos em sua maioria permanecem com parte dos cabelos e da barba. Não cortam as unhas. Para formolizar o corpo, injeta-se de três a seis litros de água com 10% de formol pelas veias carótida ou femoral. Uma bomba de pressão encube a volta da circulação no cadáver. Depois, no tanque, o corpo fica submergido por 30 dias. Cabem em média cinco corpos em um tanque. Por vezes é preciso colocar um peso sob o corpo para ele não subir. Neste tanque está a imagem mais constrangedora e áspera da sala de depósito do departamento. “É porque nesses corpos você vê seu semelhante, por estarem inteiros.”, explica Helson.

Os corpos inteiros vão sendo descaracterizados com o decorrer das aulas de dissecação. O cadáver número 1, perdeu a tatuagem do peito: “Mafis ou Mefis”, não lembra direito Helson. Peles, nervos, membros e órgãos vão sendo tirados. Por fim se tornam partes do corpo humano. Neste processo estão três “troncos”. Um homem velho magro de cavanhaque branco e ralo com pênis intacto é um deles.

A seleção das partes acontece como qualquer outra: o que é melhor fica. Para as não selecionadas, como o pulmão danificado pelo fumo, preto com buracos, resta um contêiner preto ao lado dos garrafões de formol. Dentro, pedaços indefinidos do corpo humano. Semestralmente, já com 200 a 300 quilos, o que está no contêiner é enterrado em vala comum junto aos cadáveres do SVO e do IML. Pedaços de corpos com formol são muito resistentes, mas mesmo assim existem bactérias para os putrefazerem.

As partes boas para estudo são serradas dos corpos. Ficam dividas pela sala de depósito. Os órgãos ficam em tambores coloridos e nomeados. Os rins ficam no tambor amarelo, os pulmões em tambor azul, os corações no vermelho. Membros ficam num tanque de formol igual aos do anfiteatro. Para maior didática dos alunos, Helson explica que veias, artérias ou nervos são pintados com corantes ou tintas. Exatamente como João Bruno, estudante de medicina, fez com as veias de uma perna. 50 horas de trabalho, entre pintar e tirar gorduras ou partes não importantes para o estudo.

Bruno respeita muito os corpos, quer implantar um minuto de silêncio no começo das aulas no departamento. Helson, evangélico, e Wellington, católico, ex-participante do grupo de jovens, não rezam pelos corpos. Helson por que acredita que devemos rezar por eles enquanto vivos. Assume a mesma conduta com sua família. Wellington porque nunca atinou sobre a idéia. “Taí nunca pensei nisto. Rezo pelos meus familiares, mas por eles nunca pensei.”

Existem treze corpos inteiros, dois sem dissecação, três “troncos” e dois bebês inteiros no Departamento de Morfologia para 450 alunos. Quantidade insuficiente para o professor Alan Marcos. Ele não doaria seu corpo para estudos. O professor Saraiva Leão, médico e escritor, que dá nome ao anfiteatro também não doou seu corpo. “Em 20 anos de carreira nunca ouvi dos colegas algo sobre isto”, o professor Allan prefere doar para transplantes. A última doação foi em 1986. Um homem de Santa Catarina. Ele pôs no testamento a doação do corpo, como morreu em Fortaleza, seu corpo foi doado para o departamento. Helson e Wellington não doariam seus corpos. O último porque segue a mesma filosofia do professor. Helson porque acha “drástico” o que fazem com o corpo. “Se fosse para optar, eles não aceitariam (...) É imposto”.

Nos 13 meses de SVO, 2.183 corpos passaram. Muitos deles morreram na própria casa, sozinhos ou perto da família. A maioria com mais de 60 anos. Órgãos sexagenários não servem mais para transplantes. Desses corpos apenas 8 foram para o Departamento de Morfologia. O professor Allan Marcos solicitará no SVO para o próximo ano mais 6 corpos não reclamados pela família que servirão para a próxima turma de dissecação do professor Erivan.



por Bruno Xavier

6 Comentários

Anonymous Anônimo said...

e as fotos, galera? pode rolar ainda, né não...
Abraço a todos.. felicidade de ver esse movimento no blog...

9:51 PM  
Blogger Henrique Araújo said...

bruno, meu filho, fiquei arrepiado. mais com a frieza do próprio texto do que com qualquer outra coisa.

abraços!

9:15 AM  
Anonymous Anônimo said...

Ow coisa boa é ler texto bom de novo. As sensações são de primeira vez. Igual a um filme, meu caro apreciador do audio-visual. Sempre te causam sensações novas.

7:55 PM  
Anonymous Anônimo said...

O mais engraçado é que eu já tinha lido esse texto antes, lendo de novo foi tão diferente. Que está bem escrito, está. Mas vou concordar com o Henrique. Que frieza impressionante. Deu pra imaginar cada cena, cada corpo, cada ógão, a sala.. tudo. E uma agonia a cada linha que não tenho como explicar. Pode ser exagero meu, mas me deu uma aflição de eler esse texto.

6:10 PM  
Blogger Henrique Araújo said...

marília, "agonia" disse tudo...

10:14 AM  
Blogger Débora Medeiros said...

Eu gostei do texto. Realmente, frio como imagino que seja um necrotério. Mas acho que esse é o tratamento mais apropriado ao assunto - o mais difícil de conseguir, até.

Se tivesse pegado uma pauta dessas, teria trabalhado os resquícios de memórias dessas pessoas: mortos e vivos. Aí teria o risco de cair no pieguismo.

O texto mais frio trata os envolvidos com respeito, circunspecção, ao menos.

3:06 PM  

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