segunda-feira, janeiro 29, 2007

Perfis

Por Henrique Araújo
O nome dele é Francisco, tem 30 anos, três filhos e uma carteira de índio. “Tapeba”, diz o documento emitido pela Funai e exibido com orgulho. Palmilha, a cada dois dias, a distâcia que separa a aldeia Ponte da casa de um amigo que mora no Icaraí, em Caucauia, na Região Metropolitana de Fortaleza. “Sem tomar café nem comer nada, me larguei na estrada às cinco da manhã”, conta, gabola. Claro, modo de dizer. O que ele tem mesmo é orgulho, não apenas de ser índio e, dentre os poucos que ainda restam, tapeba. O consolo vem mesmo é da capacidade de ir seguindo, à revelia da sorte e da indiferença.

Na estradinha asfaltada, Francisco aguardava à sombra do extenso muro. Do lado de dentro, um grande jardim e uma área de lazer excepcionalmente arborizada. Um pé suspenso, outro servindo de apoio ao corpo extenuado, Chico, em meio a tanta poeira, viu o Santana verde aproximar-se devagar. Meia dúzia de palavras depois, e ele retornava para a aldeia onde o aguardavam a esposa e três crias – uma de três meses, uma de 6 anos e outra de 9. “Hoje tá difícil de conseguir alguma coisa”, comenta ao acaso. O motorista do Santana aproveita a deixa de Chico – foi assim que ele se dirigiu ao homem de pele escura – e costura a sua própria cantilena. Os três conversam, escutam e lamentam. Mais lamentam, cada qual a seu modo, do que conversam ou escutam. A miséria de Chico, entretanto, é magnética como os olhos azuis de Maria Sharapova.

Antes de Chico, ainda no Icaraí, em frente a um condomínio a poucos metros da praia, o Santana verde encosta na calçada. São 12h30, e o homem de aparência exótica estica o pescoço para fora da janela e pergunta, cansado, o preço da passagem cobrada nos ônibus que seguiam para Fortaleza. Minutos depois, os dois conversam no veículo já em movimento. “Comprei esse carro apenas pra fazer lotação”, confessa o motorista, que mora no Tabapuá, bairro de Caucaia.

Dois anos sob o viaduto que corta a avenida Mister Hull, ao lado do terminal do Antônio Bezerra, disputando passageiros “à tapa”, cobrindo viagens ao seco interior do Estado e retornando com alguns gatos-pingados. Um pouco antes, mototaxista. Chegou a comprar duas vagas, mas desistiu do negócio. “Não sou morredouro, saio logo antes do fim”, explica-se o homem de bigode ralo e barba de três dias. Agora, empreendia viagens, ganhava o suficiente para viver e adquirir, a prazo, um computador novo. “R$ 2,4 mil, faz tudo. Comprei mesmo com uma única intenção”. Da porta do Santana, o motorista retira um feixe de CDs de bandas e cantores famosos. Os discos, cerca de trinta, eram envoltos por capas impressas em preto e branco. “Tenho agora de comprar uma multifuncional e uma moto. Depois, é sair pelo mundo vendendo CDs”.

Largar antes do fim, ser imorredouro, ir adiante. Às cinco, sem café-da-manhã. “É assim que tem sido, mas a gente tem que ir em frente. Quando escuto histórias como essa do índio, dou graças a Deus por ter este carro velho mesmo, de ganhar, todo dia, meus vinte ou trinta reais”, consola-se.

Chico descera há bem pouco, sem pagar, deixando para trás um rastro de não sei que sentimento. Era uma vida injusta com todos. Ainda no carro, o membro da aldeia Ponte, filho do cacique e homem de pernas muito bem aprumadas havia apontado até onde, há muitos anos, se estendiam as terras indígenas em Caucaia. Dos dois lados da BR-222, largas faixas de uma terra parda, hoje ocupadas por construções diversas e muitos postos de gasolina. “Aquele ali não foi pra frente, foi impedido. Mas tem o vizinho, que conseguiu autorização. Não entendo é como um consegue e o outro, não, já que é tudo terra do índio”, questiona-se Chico, que hoje vive do artesanato tapeba. Naquela manhã, porém, os cordões feitos com sementes não haviam garantido nada para o almoço, e o peixe que, na sacola, exalava um odor apurado, lhe tinha sido dado por um homem qualquer. “Quando ganhei dele, ainda de manhã, estava bem fresco, duro. Agora, parece que amoleceu”. Chico, porém, insiste em permanecer duro. Pedra.

3 Comentários

Anonymous Anônimo said...

Henrique, meu caro, como é que foi essa parada. Eu juro que o que fica de mais instigante no próprio texto é a pergunta: que porra o henrique estava fazendo no meio desse história? Para mim fica claro que isso foi uma vivência de um dia ordinário que você decidiu transformar em reportagem. Eu acho legal, mas nessas situações prefiro trabalhar com algo mais perto da crônica realmente, já que de amarração você não tem nada, a não ser dois vultos anônimos pela cidade. Claro, a proposta tem tudo a ver com o grupo e não sei até que ponto essa opção por trabalhar com a crônica seja um vício do que cabe ou não em cada gênero, mas acho que o texto serve muito mais como exercício - de que tudo pode virar reportagem - e experimentação - da própria observação - do que uma reportagem ou um perfil propriamente dito.

Acho também que a gente tem que se preocupar com arremates que se aproximam de um tom poético, já que você, com uma frase fecha uma comprensão meio lírica da parada. Eu não gosto muito de resolver o jornalismo literário na prosa poética e você não faz isso frequentemente, mas o final desse texto em particular é isso pra mim. Prefiro desfeixos que construam uma imagem ou se valham de uma informação que fale por si só. Tá ligado?

Valeu

11:24 AM  
Anonymous Anônimo said...

Bem, era isso mesmo. Acertou em cheio. Na verdade, o texto se encaixa dentro da proposta lançada anteriormente por mim – acho que, bem antes disso, outra pessoa tinha sugerido a mesma coisa, mas não lembro quem – que consiste em colocarmos no blog pequenas reportagens, meio crônicas, meio sei lá o quê. Na época, citei como exemplo a praça da bolacha, que rende uma boa micro-reportagem ou mesmo um texto a meio caminho da crônica e do jornalismo.



Enfim, eis a proposta. Um texto mais híbrido, quem sabe, que funcionasse como exercício e também pra não deixar o blog de todo de parado ou apenas estufado com posts indicando matérias de terceiros. Acho que, nesse aspecto, ele fica mais do que justificado e as observações do Pedro, correspondendo exatamente ao propósito que norteou tudo.



Quanto ao arremate, também concordo. Uma concessão ao lirismo. Não sei, mas, na hora, foi o final que veio e, em seguida, foi ficando, ficando... Se bem que, pensando bem, acho que não foi uma concessão absoluta, apenas parcial. No mais, acho que a prosa poética pode ter uma função no texto jornalístico, não como construção predominante, mas como elemento que, entre blocos de textos ou mesmo entre períodos mais longos, quebre ou desautomatize a escrita. Sei lá, talvez uma brecha, um facho ou um rasgo no meio da escrita. Agora, isso feito com muito cuidado.



Era isso.

12:08 PM  
Anonymous Anônimo said...

E deu vontade de seguir esses dois homens mais um pouquinho, de saber mais de suas vidas. Tentar, talvez, encontrar um fim pras suas misérias.

9:23 PM  

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