sábado, março 24, 2007

[série epistolar]


Aos amigos e amigas,

Dou notícias. Hoje é segunda-feira, 19, dia de São José. Fez sol na cidade, sim, muito calor. Na rua, lama. Ela esquenta e evapora rapidamente. À tarde, apenas algumas poças. Os meninos já podem jogar bola novamente. Ao menos até a próxima chuva, quando tudo volta a se encher.

Estou morando entre cães e gatos e vizinhas histéricas. Em frente, uma oficina de materiais recicláveis. Estão padronizando os carros da oficina. Antes, eram todos diferentes, cores e formatos. Menos os homens e mulheres que empurram das cinco da manhã às cinco da tarde. Esses, continuam os mesmos. Hoje, à exceção de um mais sofisticado (carrega som e se serve de um toldo para fazer sombra), todos foram pintados de marrom e numerados. Batem ponto, inclusive. Para as crianças da rua Mansidão, os carrinhos e os cacarecos que trazem na barriga são a grande atração. Muito ferro retorcido pode se converter num fantástico brinquedo nas mãos de um garoto. Da vela de um carro, fazem um míssil. Que pode atingir as casas e apartamentos mais distantes, sossegados do outro lado da cidade.

Outro grande barato para a criançada: uma velha louca que corre e grita, as mãos carregadas de sacolas, e cai no chão. Ela é pequena e muito enrugada; quando cai, encaracola-se ainda mais. Nessas ocasiões, chega a ficar horas sentada com a cabeça enfiada entre as pernas, chorando e babando. Todos passam por ela; ninguém liga. Curiosamente, eu tenho medo, e fico apenas olhando de longe. É um medo de criança, duro de morrer.

Meus caros, tantas coisas a dizer... e não apenas da geografia urbana, da passagem do tempo ou dos últimos programas de televisão; ou, ainda, daquilo que ontem foi notícia nos jornais daqui. Como escrevo depois de muito tempo, e para pessoas que me cativaram, a vontade era de dizer outras coisas. Na verdade, queria falar do sub, e acabo esbarrando no raso que sou.

No meio disso tudo, me permito um desabafo. Sabem as pessoas, essas que nos cercam? De uns tempos pra cá, têm me enchido. O suficiente para pretender deixar tudo, estudos e trabalho, e voar para o interior, criar galinhas, cuidar dos patos, lavrar a terra. Mas não sou lavrador. Escrevo. E escrever não ganha a vida. Por isso vou ficando e ficando, vendo os meninos forjarem traves com os tijolos e garrafas de plástico, esfolarem parte dos dedos num chute que, em vez da bola murcha, acerta a pedra que se ergue traiçoeira do calçamento. Esses meninos... Também esfolei muitos dedos na infância. Mas ganhei outras coisas nessas mesmas ruas de lama e pedras. Tanto tempo depois, vejo o saldo. Que não se mesura, apenas suspeita-se.

Falo rapidamente da saúde, mental e física. Estive muito mal, em falso no mundo. Como uma mesa sem duas de suas quatro pernas. Também dores de barriga, digo, no estômago, e mais um bocado de outras tantas coisas que nem sei se vale realmente a pena. Mas eu digo. Acho que vão entender, ou não, por isso digo. Meus amigos, fiquemos em silêncio.

Espero que estejam todos muito bem. Espero. Porque esperar é, às vezes, a única coisa que podemos fazer.


Abraços,

Henrique Araújo

4 Comentários

Blogger Diógenes said...

Fabuloso Henrique, simplesmente fabulso.

12:05 PM  
Anonymous Anônimo said...

A vida é mesmo feita de coisas pequenas. Pequenas felicidades ou pequenas desgraças, que a gente quase sempre guarda pra si.

Bom ver que não sou só eu que vejo por aí...

9:58 PM  
Blogger Unknown said...

E, putz, a última frase expressa tanto do que sinto tão freqüentemente!

Adaptando Milton Nascimento, eu digo que certas frases que leio cabem tão dentro de mim, que perguntar carece: como não fui eu que fiz? :)

10:04 PM  
Anonymous Anônimo said...

que bom que gostaram, diógenes e déboras... fico feliz. a série está só começando. trata-se de um novo projeto - não exatamente um projeto, mas algo que promete. esperem e verão.

abraços a todos!

11:12 AM  

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