Sob o teto de benjamins

Texto: Henrique Araújo
O homem, ou mulher, cochilava debaixo dos benjamins pendurado ao pescoço de Raquel, a escritora, enquanto, num banco próximo, seu Galdino, elegantemente vestido para um início de manhã, mergulhado nas próprias lembranças, respondia as perguntas de um estudante. Noutra quina da praça, o Valdeci, senhor apequenado e tímido que cuida da General Tibúrcio juntamente com outros três idosos participantes do projeto Encanto das Praças – e que, por isso, recebe a bagatela de R$ 150 da prefeitura de Fortaleza –, acendia um cigarro na brasa do outro. A poucos metros, o amigo falante de seu Valdeci dava informações a um grupo de estudantes de jornalismo. Ele, no seu cantinho, apenas observava.
“Seu Valdeci, o que foi aquele prédio torto ali?”, perguntava apontando a construção inclinada para a esquerda e cuja pintura descascava em muitos pontos. “Pergunte ao outro, o Francisco, que ele sabe. Eu não sei”.
“Ali, meu filho, funcionou o comitê do PMDB, eu trabalhei por lá durante muito tempo, hoje só tem um vigia que vive colocando a molecada pra correr do prédio”, explicava um Francisco solícito.
Enquanto os vendedores vendiam, os engraxates engraxavam, os devotos rezavam e os vagabundos vagabundeavam, o estudante ouvia atento seu Galdino. Haviam chegado à praça quase juntos, ele, atrasado para a aula de campo; Francisco Galdino Neto, na hora exata. À distância, o professor-orientador apenas farejava – esperava que, posteriormente, um dos alunos escrevesse sobre o episódio da estátua. Ou sobre qualquer outra coisa, desde que escrevesse. Afinal, diria dali a dois dias, já em sala de aula, não é possível que alguém chegue numa praça e, depois de três horas sentado num banco, simplesmente afirme não haver histórias para relatar. Ali, por exemplo, estava uma: a da estátua de Raquel de Queiroz confortando um provável coração em frangalhos.
Da Praça General Tibúrcio ou Dos Leões, sobressai-se a imagem pré-estabelecida: prostituição e insegurança. Naquela terça ou quarta-feira, porém, não se viam as meninas – ou, pelo menos, nenhuma que correspondesse ao perfil que se espera de uma “mulher da vida” – e, das quatro esquinas da praça, pelo menos uma estava ostensivamente ocupada por viaturas da Guarda Municipal de Fortaleza.
“Hoje tem até um policiamento por aqui. Acho que já é o projeto do governador eleito, o tal da ronda do quarteirão. Deve ser isso”, estranha seu Galdino. E, num movimento de memória cuja razão espanta, relembra também o nome dos guardas que por ali se abancavam nos idos de 1940. “Eram dois, um chamado Cordeiro Neto e outros dois, Cosme e Damião. Aliás, tinha só dois não. Eram uns quatro”.
Era, sem sombra de dúvida, terça-feira. O mês, outubro. Fazia sol, o tempo abafado nesta época do ano. Em seguida, uma chuvinha fina. Na praça, a passarinhada dava o seu show particular. Em bandos, papagaios, ou louros, azucrinavam o juízo de uns; para outros, amainavam o ruído do trânsito ainda lerdo na avenida Sena Madureira, umas das quatro que demarcam um dos quadriláteros mais prenhes de memórias, individuais e coletivas, no Centro. Em verdade, se aquele miolo de cidade fosse uma penteadeira, certamente a Praça dos Leões ocuparia, ao lado da Praça do Ferreira, lugar de destaque.
A propósito de uma pergunta que lhe fizera o menino-repórter, seu Galdino, sem pressa, enfia a mão no bolso traseiro da calça rigorosamente engomada. Entre os documentos, salta à mão o registro da habilitação, exibido com orgulho. “Preciso de lente pra nada, sei dirigir muito bem. O médico é que não recomenda”, confessa.
Antes disso, já havia dito da peleja que fora a vida, as idas e vindas entre Cascavel e Fortaleza, o casamento, à beira de completar sessenta anos, com Maria Margarida M. Galdino e o tal do pega-pinto do Mundico, a dois quarteirões de onde estavam agora.
“Nos finais de semana, a diversão era vir até aqui, engraxar os sapatos com o Jacques – à época, o único engraxate nas redondezas – e depois apanhar o bonde ali na esquina. Sim, ali mesmo ao lado do prédio da assembléia. É. Por ali passava uma linha de bonde. Dali seguíamos até a Praia de Iracema. Chegando lá, era tomar banho e voltar.”
“E o pega-pinto?”
“Sim, era uma mistura que o Mundico, dono de uma lanchonete aqui perto, fazia e dava pra gente”. Ajudava, de acordo com seu Galdino, a fazer descer garganta adentro “meio-pão sem manteiga”. Depois, era ir embora. Eis o barato de outrora: praia de Iracema e pega-pinto do Mundico.
Aos 82 anos e morando no bairro Edson Queiroz, seu Galdino enfrenta a distância e, de ônibus, desembarca na Praça dos Leões diariamente. Procura, sem pestanejar, um banco. Dali a pouco chegarão os amigos de dominó, cerca de quatro ou cinco rapazes, contemporâneos seus, que varrem a manhã encurvados sobre uma tábua gasta pelo arrastado das pedras. Valdeci, agora decidido a falar, atesta: “Eles jogam todo dia aqui, a manhã inteira”.
E jogam mesmo. Ao erguer a cabeça do bloco – o maldito bloco de notas –, encontra seu Galdino, já de pé, lhe estendendo a mão. Cumprimentam-se: viesse mais vezes, que estavam ali quase todos os dias, dizia o senhor. O “quase”, claro, é um baita eufemismo – a verdade é que, dia sim, dia sim, os meninos levantam vôo de seus lares, largando os seus e, dentes na fresca, reúnem-se em torno do tabuleiro.
Convite aceito, o de seu Galdino. O menino-repórter, triste por lhe faltarem tantos capítulos da história interrompida sabe-se lá em que ponto, fazia cálculos para os próximos dias. Acaso lhe sobrasse algum tempo,voltaria à praça. Não pela estátua da Raquel, de resto deslocada entre feras – o Gal e os felinos. Mas, à cata dos capítulos que Galdino ainda lhe devia.
Já distantes, a trupe de jogadores inveterados de dominó se prepara. Armam o ringue. Começam a partida. Logo caem respingos de uma chuvinha que deixa qualquer um esbaforido com o mormaço subindo e, sem pedir licença, invadindo as narinas de quem ali estava. Era o jeito mudar, banco era o que não faltava. Foram arranjar-se ao lado de umas plantinhas espinhosas. Escorregasse a perna do banco e, de costas, seria o adeus.
A postos, começa, finalmente, o game. Em pouco, seu Galdino dispara com três vitórias consecutivas, mas logo é alcançado. No encalço, o páreo mais duro, senhor empertigado e metido a galanteador. A sorte, pelo visto, lhe vira as costas, e permanece cinco ou mais partidas sem vencer. Àquela altura, todos, à exceção do mais novo entre eles, emparelham-se com mais de seis pontos cada um quando, as pernas estalando de dor, o menino-repórter desiste de assistir e vai embora.
Antes, tivera o cuidado de anotar expressões, pensamentos e lances da vida mirabolante de seu Galdino, que prefere não contar. Ou, por outra, achou por bem aguardar. Afinal, são, como gosta de dizer o amigo, mais de 60 anos “pastorando vento” na praça dos Leões ou General Tibúrcio. Quando de posse do retrato inteiro, e não apenas dos pedaços, diz como foi.
No caminho, esbarra nos colegas de sala. Fulano enfiara-se na igreja: o pároco tinha permitido a visitação extemporânea. De modo que, encimados na torre, tinham visto a praça coberta de benjamins e, ao lado, após terem procedido às mesmas explicações – a saber, de que eram estudantes e outras coisas –, conseguiram permissão para subir ao último andar do velho Hotel Brasil. De lá, descortinaram boa parte do centro de Fortaleza e o mar e o céu azul que doía na vista.
Em baixo, o menino-repórter. Ele, sim, tinha voado pra longe nas memórias de um velho.
*** the end
10 Comentários
vixe como ficou grande! vão me castrar quando for à próxima reunião...
senti falta de fotos para aguçar nosso imaginário junto com suas palavras poéticas e descriçoes quase que falantes....
eita, como tá bom.
ainda vou fazer as fotos,gente. hoje choveu,amanhã faz sol. assim a rotina da capital!
Muito bem escrito rapaz. Percebo uma contínua evolução. Deu prazer de ler cada linha, mesmo muitas delas carecendo de informações relevantes. Ato glorioso. Parabéns.
Brigadão, caríssimo.
avemaria, cês num vão atualizar isso daqui não....??!?!??!?!?!?!?!??!?!?!?!
tá ouvindo, minha gente!!! vamos trabalhar, caralho!
Quando eu era pequena, ia com o meu pai comprar selo nos Correios do Centro duas vezes por mês. Sempre a gente passava pela Praça dos Leões e eu ficava encantada com os bichos nas escadas, passeava lá por dentro, olhava em volta.
Depois, deixei de comprar selos, e minha imagem da praça se perdeu na que fazem dela. Só há uma semana me surpreendi com a praça verdinha, movimentada, vista do terraço da ACI. E os leões rugiram em mim de novo. Deu vontade de correr direto pra lá.
E se eu disser que essa figura viva está bem próximo de mim?! Esse ai, o seu Galdino, é meu avô e quase todos os dias escuto histórias sobre o tempo de outroras. Ah, Fortaleza!
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