Covas e Tilápias



Naquela manhã, Adriana recebe os dois carás das mãos do ajudante-de-coveiro. O procedimento é conhecido de todos: primeiro, retiram-se as guelras e as vísceras da “mistura”; em seguida, após descamá-los, Adriana os deposita numa bacia com água pela metade, na qual ficam durante alguns minutos antes de receberem duas boas mãos de sal. Dali, o próximo destino é, certamente, a panela.

Distante, Francisco Cunha dos Santos, 41 anos, prepara a argamassa com que irá alisar um dos mais de mil e oitocentos jazigos que, desordenadamente, povoam o espaço do cemitério Santo Antônio, na periferia de Fortaleza. Além de sepultar, Cunha, como é que conhecido dos vivos e mortos, também é pedreiro e faz, na maior parte do dia, pequenos reparos nos túmulos pertencentes às famílias que podem pagar pelo serviço. O que ganha, para variar, não cobre as despesas, e, do carro que corta veloz os sonhos de Adriana, Cunha admite: não pode comprar sequer o pneu.
“Se a gente economizasse, Cunha, dava até pra comprar”, insiste Adriana, ao pé do fogareiro arranjado entre duas lápides que fazem as vezes de mesa. “Nem o pneu a gente pode comprar”, silencia o marido.
Cavando as memórias

Quanto ao filho, não esconde a admiração. E, para confirmar, conta uma história da época em que moravam no Pirambu: “Ele era muito magro, vivia doente. Nasceu de sete meses, gastei muito dinheiro com ele. Chegava o povo e dizia: esse aí não se cria, não”, relembra seu Ferreira, pai de Cunha e pedreiro por profissão. O que se segue, ele conta às gargalhadas. “Até que um dia eu ganhei um peba de um amigo, coveiro no São João Batista. Levei pra casa, engordei o animal. Quando fui abater, tive que sangrar; quando vi, o menino tinha enchido um copo com o sangue do bicho e bebido todo. Pensei que fosse morrer, mas começou foi a engordar”.

Segundo o pai, caboclinho aprendeu a profissão ainda criança, quando tinha dez anos. Desde então, não saiu mais do cemitério. O primeiro morto a ser sepultado pelo filho foi como o último: apenas um corpo de homem ou mulher a ser coberto de terra. Perguntado, Cunha relembra: “O primeiro está duas lápides adiante”, diz apontando com a mão esquerda o exato local. Vexame, apenas quando lhe pediram para enterrar um homem ao lado de outro que fora levado para lá havia pouco tempo. Ao abrir a lápide, o coveiro percebeu, da pior maneira possível, que o defunto ainda estava “fresco”.
“E o médico da prefeitura ainda tem coragem de dizer que esse trabalho não é insalubre. Da próxima vez que ele vier aqui, vou jogar um pedaço do morto em cima dele”, desafia Cunha.
Antes do meio-dia, macarrão escorrido, arroz cheirando na panela, o peixe fica pronto. Apesar da falta de espaço, Adriana esmera-se na cozinha, caprichando sempre. Cunha interrompe a conversa e o trabalho na lápide para provar mais uma vez do tempero da esposa. De um jazigo próximo, improvisa-se a mesa para o almoço; Cunha faz da bacia onde Adriana lavara os peixes o seu prato. Olha com prazer as tilápias estiradas na bacia. Sequer lembra daquilo que o pai tinha recomendado ao ajudante: que depositasse o dinheiro no banco, para render.
9 Comentários
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beissaí hein?!
cara, esses comentários aqui estão ficando cada vez mais enigmáticos... ai de mim, senhor da escuridão...
muito interessante henrique!
não temos o hábito de saber dos
anônimos que nos cercam e nos velam(!)
Gostei. Tem uma parte que o filho e o pai se mistura no texto, logo no parágrafo subsequente a "cavando memórias",
Muito interessante! Ler isso aqui foi como sentar numa dessas lápides (a do envenenado? A do enforcado...?) e conversar olhando nos olhos de cada uma dessas pessoas. É quase um conto, essa reportagem!
São coisas assim que provam que um relato do dia-a-dia pode ter brilho sem que, pra isso, a gente precise forçar a barra.
Tava com saudades daqui! Agora, vim pra ficar, hehehe!
Ah, é a Débora aí em cima :p
que fique, então!
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