sábado, dezembro 09, 2006

Covas e Tilápias

por henrique araújo



De bicicleta, chegam, juntamente com o cheiro-verde e o pimentão, as tilápias. Vinham embrulhadas em sacolas pardas e custaram, segundo o ajudante-de-coveiro, R$ 6 cada uma. Encostado a uma lápide, sob a qual dormem "um enforcado e um envenenado", José Ferreira dos Santos, 73 anos, protesta: antes tivesse depositado o dinheiro no banco, para render. O ajudante, àquela hora esfomeado, ofende-se e rasga a desrespeitar José Ferreira, chamando-o de “velho doido”. “A gente morre, e o dinheiro fica pra quem, velho?”, perguntava exasperado enquanto descia da bicicleta.

Adriana tem 35 anos e é natural de Fortaleza. Diariamente, pouco antes das dez horas da manhã, sai de casa, no bairro Vila Velha, e apanha o ônibus que a deixa a poucos metros de onde o marido, Francisco Cunha dos Santos, trabalha. “Venho fazer o almoço e acabo tendo de esperar até ele terminar. Quando tem muito trabalho, a gente dorme aqui mesmo”, diz. Ao lado da saleta onde Paulo César de Sousa, o administrador, atualiza o cadastro dos proprietários de lotes, Adriana e o marido aninham-se após cada jornada diária. O cômodo é estreito, e as baratas, segundo Paulo, são ali os grandes inimigos a serem batidos.

Naquela manhã, Adriana recebe os dois carás das mãos do ajudante-de-coveiro. O procedimento é conhecido de todos: primeiro, retiram-se as guelras e as vísceras da “mistura”; em seguida, após descamá-los, Adriana os deposita numa bacia com água pela metade, na qual ficam durante alguns minutos antes de receberem duas boas mãos de sal. Dali, o próximo destino é, certamente, a panela.

Enquanto a água da torneira escorre na bacia, tornando cada vez mais branca a carne do peixe, Adriana conversa. Não tem filhos, mas os espera para breve. Da profissão do marido, coveiro há 23 anos, apenas uma reclamação: não tem folgas. Cunha abre covas de sol a sol e, quando novembro está próximo, o expediente estende-se madrugada adentro, sem hora para terminar, tantos são, além dos próprios enterros, os pedidos para reparos na capela do cemitério e nas lápides. O dia-a-dia do casal é, portanto, intramuros – não os de seu domicílio, mas os do cemitério. Não tem lazer, horas de folga e os momentos de total intimidade são como agulhas encontradas no palheiro. A solução para parte dos problemas que enfrentam, segundo Adriana, seria muito simples. Um carro resolveria tudo, suspira a morena.

Distante, Francisco Cunha dos Santos, 41 anos, prepara a argamassa com que irá alisar um dos mais de mil e oitocentos jazigos que, desordenadamente, povoam o espaço do cemitério Santo Antônio, na periferia de Fortaleza. Além de sepultar, Cunha, como é que conhecido dos vivos e mortos, também é pedreiro e faz, na maior parte do dia, pequenos reparos nos túmulos pertencentes às famílias que podem pagar pelo serviço. O que ganha, para variar, não cobre as despesas, e, do carro que corta veloz os sonhos de Adriana, Cunha admite: não pode comprar sequer o pneu.

“Se a gente economizasse, Cunha, dava até pra comprar”, insiste Adriana, ao pé do fogareiro arranjado entre duas lápides que fazem as vezes de mesa. “Nem o pneu a gente pode comprar”, silencia o marido.


Cavando as memórias

Ainda sobre a lápide dos dois homens mortos de forma trágica, seu Ferreira talvez estranhe: embora tenha a barriga cortada por duas hérnias, o “caboclinho”, apelido de infância de Cunha, surpreende pelo vigor e coragem. Uma imagem bastante diferente daquela de trinta anos atrás. Vindo de Itapipoca, município do interior cearense, tangido pela seca de 1958, seu Ferreira foi trabalhar na construção civil. Conheceu a mulher pouco tempo depois e logo se casou. Do matrimônio, quatro filhos, dois dos quais calharam de ser coveiros: Cunha no Santo Antônio e o irmão, no cemitério do Mucuripe. Hoje, o pai de Cunha é aposentado, mas ainda faz “biscates” no cemitério, vigiando túmulos de famílias mais abastadas. “Não posso mais trabalhar, já passei por seis operações, todas mal-sucedidas”, brinca seu Ferreira, o “velho doido”.

Quanto ao filho, não esconde a admiração. E, para confirmar, conta uma história da época em que moravam no Pirambu: “Ele era muito magro, vivia doente. Nasceu de sete meses, gastei muito dinheiro com ele. Chegava o povo e dizia: esse aí não se cria, não”, relembra seu Ferreira, pai de Cunha e pedreiro por profissão. O que se segue, ele conta às gargalhadas. “Até que um dia eu ganhei um peba de um amigo, coveiro no São João Batista. Levei pra casa, engordei o animal. Quando fui abater, tive que sangrar; quando vi, o menino tinha enchido um copo com o sangue do bicho e bebido todo. Pensei que fosse morrer, mas começou foi a engordar”.

Segundo o pai, caboclinho aprendeu a profissão ainda criança, quando tinha dez anos. Desde então, não saiu mais do cemitério. O primeiro morto a ser sepultado pelo filho foi como o último: apenas um corpo de homem ou mulher a ser coberto de terra. Perguntado, Cunha relembra: “O primeiro está duas lápides adiante”, diz apontando com a mão esquerda o exato local. Vexame, apenas quando lhe pediram para enterrar um homem ao lado de outro que fora levado para lá havia pouco tempo. Ao abrir a lápide, o coveiro percebeu, da pior maneira possível, que o defunto ainda estava “fresco”.

“E o médico da prefeitura ainda tem coragem de dizer que esse trabalho não é insalubre. Da próxima vez que ele vier aqui, vou jogar um pedaço do morto em cima dele”, desafia Cunha.

Antes do meio-dia, macarrão escorrido, arroz cheirando na panela, o peixe fica pronto. Apesar da falta de espaço, Adriana esmera-se na cozinha, caprichando sempre. Cunha interrompe a conversa e o trabalho na lápide para provar mais uma vez do tempero da esposa. De um jazigo próximo, improvisa-se a mesa para o almoço; Cunha faz da bacia onde Adriana lavara os peixes o seu prato. Olha com prazer as tilápias estiradas na bacia. Sequer lembra daquilo que o pai tinha recomendado ao ajudante: que depositasse o dinheiro no banco, para render.

9 Comentários

Blogger Henrique Araújo said...

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8:01 PM  
Anonymous Anônimo said...

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9:16 AM  
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beissaí hein?!

4:04 PM  
Anonymous Anônimo said...

cara, esses comentários aqui estão ficando cada vez mais enigmáticos... ai de mim, senhor da escuridão...

9:16 AM  
Blogger Simone Lima said...

muito interessante henrique!
não temos o hábito de saber dos
anônimos que nos cercam e nos velam(!)

12:06 PM  
Blogger Diógenes said...

Gostei. Tem uma parte que o filho e o pai se mistura no texto, logo no parágrafo subsequente a "cavando memórias",

7:58 AM  
Anonymous Anônimo said...

Muito interessante! Ler isso aqui foi como sentar numa dessas lápides (a do envenenado? A do enforcado...?) e conversar olhando nos olhos de cada uma dessas pessoas. É quase um conto, essa reportagem!

São coisas assim que provam que um relato do dia-a-dia pode ter brilho sem que, pra isso, a gente precise forçar a barra.

Tava com saudades daqui! Agora, vim pra ficar, hehehe!

10:49 AM  
Anonymous Anônimo said...

Ah, é a Débora aí em cima :p

10:51 AM  
Anonymous Anônimo said...

que fique, então!

7:47 PM  

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