segunda-feira, julho 24, 2006

Diários de Ônibus


por Diógenes de Sousa


Mais um dia de semana. Eis me eu a pegar a condução. Ritual profano do chegar. Dirijo-me especificamente ao Terminal da Parangaba, um não-lugar nosso de cada dia. A cor cinza predomina, acentuando o mal-estar ambientado pela fuligem que escapa daquele exército de caminhões berrando, vociferantes ao som da guerra de cada parada, de cada minuto precioso e sagrado.

As filas crescem para trás, para os lados, paralelas se formam. Nada de novo. De vez em quando até ensaio algum protesto, “Por favor respeita a fila ae, vá lá”. Ato esporádico e voz semi-alta. Raramente cumpro com o pensamento de não deixar qualquer que seja a injustiça passar sem resistência e luta, “Não passarás”. Essa era uma das máximas de Guevara, que para além de uma marca de rebeldia industrializada, ensina por sua vida a essência revolucionária do socialismo como prática cultural. É nessas hesitações que ainda percebo o pequeno-burguês que habita por trás dessa estampa velha e desbotada, nem por isso menos hipócrita que qualquer outra que ostenta a representação do herói revolucionário.

A fila cresce pra trás, para os lados, paralelas se formam. Algo de novo. A habitual desordem e indiferença em relação à fila toma escala e qualidade ainda não presenciadas. Assisto com sono mal dormido pessoas que acreditaram na fila serem deixadas para trás pelos que acreditam e constroem “o mundo dos espertos”. Para além da habitual entrada oportunista e "malandra" que se efetiva próximo à porta da entrada do ônibus, o que se vê é a guerra declarada da lei do mais forte. Os agentes da “fila” paralela empurram e são empurrados, corpos comprimidos, rostos amassados, cenas de uma autofagia urbana.

Que pensar da reprodução e recriação de uma cultura construída sob a aceitação de que só haverá espaço para poucos? De que só alguns poderão chegar ao abate, à cisão diária do corpo compensada pelo sentar, pelo desafogar um pouco que seja do sono sufocante de uma vida mal dormida?

Depois de preenchida e lotada de carne moída, a lata de guerra vociferante se põe em movimento. A cada sinal vermelho, uma mistura de ódio e inveja vai se engarrafando nos encontros constrangedores de olhares que se cruzam entre aqueles que indo na mesma direção, encontram-se em caminhos contrários de uma vida mal resolvida. Por cima, o olhar cabisbaixo daquela gente enlatada. Por baixo, o olhar escorregadio de motoristas solitários em cadeiras confortáveis dobra-se ostentando poltronas vazias. Ainda há o não-olhar dos vidros fumês.

Pergunto-me ao saltar e cair na parada que dia-a-dia me aguarda: “Se Guevara estivesse entre nós, que meio de transporte utilizaria?” A resposta me parece óbvia: qualquer um que lhe levasse para longe, muito longe!

4 Comentários

Anonymous Anônimo said...

poético demais pro meu gosto...

10:31 AM  
Anonymous Anônimo said...

Mas é uma poesia do cotidiano! Acredito que ela é possível - e às vezes necessária. Gostei do texto, Diógenes, principalmente do último parágrafo. Mas vc podia ter explorado mais os conflitos, ultrapassado o simples registro. Valeu!

8:41 AM  
Anonymous Anônimo said...

Só uma observação: eu não caio na parada (foi erro de digitação, foi mal ae).

12:16 AM  
Anonymous Anônimo said...

Quanto a explorar mais os conflitos seria uma boa mesmo, mas queria fazer algo sintético, próprio ao formato de blog. A intenção é deixar deixas tb.

12:18 AM  

Postar um comentário

<< Home