sexta-feira, junho 23, 2006

[Sem Título]

Por Henrique Araújo

Fome, sede, pernas bambas. Enegrecidas pelo manuseio diário das páginas de jornais, as mãos deixam marcas nos assentos da van, que segue em frente em seu ritmo alucinado. A ambulância pilotada por Nicolas Cage num filme de... Começa com “F” ou “M”, mas agora não lembro. Me sinto, por instantes, parte de um road movie à brasileira ou qualquer coisa parecida. No lugar dos psicotrópicos, alucinógenos e congêneres, fome. Tontura em vez de glamour. Assim a rotina acontece.

Tonturas. Há duas semanas ou mais. Vêm e vão sem maiores explicações. Atribuo tudo à fome. Afinal, já passava das 13 horas. No estômago, nem sinal do longínquo café-da-manhã – modo pernóstico de dizer café com pão e manteiga, por vezes uma fatia de queijo ou presunto. Nada de frutas ou leite. Creme com bolachas. Cereal no pratinho ou iogurte. Apenas café com pão e manteiga. Margarina. Queria Geléia de Mocotó, mas o dinheiro não chega. “Não chega”, digo e repito. Ninguém acredita. Onde a botija?! Na puta que te pariu.

Avenida Pontes Vieira. Começa quando termina a 13 de Maio. Termina quando começa a Virgílio Távora. Ao longo do percurso: Assembléia Legislativa, Boi do Sertão, Clínica São Mateus, etc. Concessionárias. Padarias. Pela manhã, cheiro do pão quentinho. A contragosto, olho. Gosto. De pãezinhos, quatro ou cinco, embrulhadinhos na sacola. Mamãe feliz, papai mais ou menos. Tudo muito bem temperado em verde e amarelo. Que é Copa do Mundo. Brasil na cabeça. E na barriga? Gooooooool, grita seu Tavares, antes de cair de braço no cabo da enxada.

Ainda na Pontes Vieira. Muito bonitinha, a avenida, lhe faltando somente algumas árvores. Lugar fantástico, sempre passo olhando: Revistas e Cia. Coisa de quando ainda era menino. Tem também uma pastelaria com cara de lanchonete de terminal. Gosto dela assim mesmo, terminal. Um pastelzinho terminal para um jovem terminal. Um pouco mais adiante, o shopping center Iguatemi. Órgão implantado e rejeitado pelo ecossistema manguezal. Se me perguntassem, seria cáustico: não parece mesmo com um siri anabolizado? Ganhou vida e engoliu o mangue, doravante descartável.

Corte pra van, à mil comendo o asfalto ondulado da Pontes Vieira. Comendo. Alguém tem que fazê-lo. Pelo menos estou sentado. Se desmaiar, pensarão “dormindo, o pobrezinho”, ou, simplesmente, coisa alguma dirão. Prefiro assim. Inaudito. Desdito. Não desmaio ou durmo. Sempre bem acordado, mesmo dormindo. Em volta, cenário made in Monet: rostos bonitos, brancos. Porte esguio, atlético. Marcas do bronzeado custoso. No final das contas, tudo vale a pena, cada centavo investido nas curvas ou no bíceps bem-aquinhoado. Cada centavo. Modéstia à parte, somos bons no que fazemos de melhor – ou seríamos melhores no que fazemos de bom?! O fato é um só: rapazes e garotas, meninos e meninas, tudo não passa duma grande curtição, e Deus, claro, um grande gozador.

Abrupto, final de linha. O cobrador pergunta: esquerda ou direita? Embora, na prática, não faça tanta diferença, digo moro à esquerda, em seguida salto com os olhos pregados no chão. Evito todos. Não olho nos olhos. Todos os dias o mesmo trajeto. A mesma fome acompanhada de tonturas, suor e pernas bambas. A mesma fome. Por vezes, a barriga cheia, ainda assim persiste, faminta, a fome. Sou um prato cheio, sei muito bem disso.

2 Comentários

Blogger Diógenes said...

Putz, a do carangejo anobolizado foi muito massa. Minha namorada tá falando q se identificou com o texto, principalmente com relação ao "café da manhã". Talvez o pão com manteiga tenha ficado sem valor, o que é preocupante, mas a parte isso, gostei muito.

11:24 AM  
Blogger Thalita Castello Branco Fontenele said...

Que ritmo!
E é isso mesmo que vejo quando passeio por estes lados, e qualquer coisa a mais - a saber: metafísico.

Gostei.

12:06 AM  

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