segunda-feira, junho 05, 2006

Espiritismo e Frangos Abatidos


Texto e fotos: Henrique Araújo
Era madrugada. Sendo ou não a primeira vez, a verdade é a mesma: a faca desliza pelo pescoço fino, e eis o sangue a correr viscoso e quente através das penas. Há outra alternativa, esta mais espetacular: torcer-lhe o pescoço com as próprias mãos. Depois é só assistir às piruetas e volteios do animal. Mas, no caso de dona Socorro, não havia tempo suficiente para desfazer-se em considerações acerca da vida e da morte ou mesmo deliciar-se com a capacidade de matar da qual somos dotados. Eram dezenas de frango na fila de espera, todos aguardando pacientemente o contato suave de suas mãos. Dona Socorro, uma senhora de olhos azuis e rosto amável, era uma amadora quando começou. “Nunca tinha matado um frango na minha vida”, uma ponta de culpa nas palavras. Depois de mortos, arrancava-lhes as penas, mergulhando-os em água fervente. As vísceras eram retiradas através de um corte profundo na base do frango. À espera delas, gatos. Roçando-se nas pernas de dona Socorro ou empoleirados nos muros, acompanhavam, toda noite, o desenrolar do abate.
O nome completo é Maria do Socorro Carneiro de Moraes. Tem 63 anos e há 43 mora na Parquelândia, bairro de Fortaleza cuja história se confunde muitas vezes com a dela. Dona Socorro, como é conhecida de todos, não se surpreende quando, numa quarta-feira de dezembro de 2005, entre livros folheados ao acaso e perguntas desconcertadas, revelo a finalidade da visita.
“Vim entrevistar a senhora”, pensamento logo seguido da pergunta, verbalmente expressa, “posso dar uma palavrinha com a senhora?”
A tarde apenas começava e dona Socorro, apontando um banquinho de madeira, pediu-me que sentasse. Foi relembrando um pouco esses dias de ontem e hoje que deu início a uma conversa que se entendeu por quase toda a tarde, somente interrompida, em alguns momentos, por clientes à procura de livros e catadores de lixo que lhe traziam pilhas de Cláudia, Veja e Caras esfarrapadas. “Se não fosse por mim, estas revistas iriam pro lixo. Também compro pra ajudar”, explicou-se depois que um negro esquálido, curvado sobre um carrinho-de-mão cheio de papelão, foi embora.
E foi também numa quarta-feira, a última de maio de 2006, que a visitei novamente. Desta vez, fui recebido como um velho amigo a quem dona Socorro há muito não via. Sentamos nos mesmos bancos de madeira, agora à esquerda da banca de novos e usados. “É que de manhã o sol bate lá daquele lado”, explicou.
Há 15 anos à frente de Antiquário, banca de livros e revistas que fica na Praça da Igreja Redonda, dona Socorro é dessas que fincam pé quando querem alguma coisa. Quando pensou em trabalhar, foi como se tivesse entrado em rinha de cachorro grande. E foi realmente desta matéria-prima que dona Socorro tomou para modelar a própria vida: teimosia. De um lado, o pai e sua carranca; do outro, o noivo cuspindo reprimenda às aspirações da futura mulher. No meio, a aparência frágil de dona Socorro. Premida pelas circunstâncias, casou e foi cuidar da casa, dos filhos e do agora marido, Sr. Walter. Tudo, a bem dizer, calculado. Queria mesmo era fugir do jugo familiar, encarnado na figura paterna. Acabou esbarrando na figura não menos rígida do marido.
“Sempre quis trabalhar, o pai é que nunca permitiu. Mulher para ele era da cozinha pro quarto, e só. Quando casei e vim morar aqui na Parquelândia, em 1962, a cabeça do marido era a mesma; a discriminação contra a mulher, também. Queria estudar Direito, mas acabei me submetendo”, diz entre risos.

Mas, pergunta recorrente, como chegou mesmo a vencer as resistências e conseguiu trabalhar?! Dona Socorro esclarece rápido: “necessidade”. Entre uma atividade e outra, ela garante que fez de tudo um pouco, um bocado: foi costureira, sacoleira, proprietária de uma agência de publicidade e transportou, ainda, alunos de escolas da vizinhança. Catou alimentos em feiras livres da capital. Nesta época, a cabeça, segundo ela, “já tinha parado de funcionar”. Tudo por causa dos frangos abatidos ao longo da madrugada no quintal de casa.
“Fornecíamos frangos ao Hospital Antônio de Pádua, que hoje nem existe mais. Nunca tinha matado um frango na minha vida. Comecei mesmo por necessidade. Foram quase dez anos abatendo frangos. Como tínhamos de entregá-los de manhã muito cedo no hospital, passava quase toda a madrugada abatendo”, relembra emocionada.
“Foi quando a senhora entrou em depressão...”
“Foi. A partir de certo momento, percebi que morria a cada animal abatido. Foi a pior coisa que já fiz em toda a minha vida”.
Dona Socorro esclarece. Após cerca de dez anos trabalhando como açougueira, caiu em uma espiral de crises: financeira, psicológica, religiosa, emocional. “Minha vida era um conflito. O Walter, meu marido, foi embora pra São Paulo no final dos anos 70. Fiquei sozinha”. O episódio funcionou como uma espécie de divisor de águas em sua vida. Mudou radicalmente os seus hábitos alimentares, passando a não comer mais carne animal, e descobriu na doutrina Espírita um refúgio. A banca, encontrou-a pouco depois, quando estava à procura de trabalho.
“Era o que eu precisava. Depois de conseguir a concessão para trabalhar na banca, fui para lá sem nada, porque as distribuidoras não queriam fornecer revistas para outro estabelecimento, sendo que já havia um na praça. Então comecei só com as revistas que tinha em casa, e foi quando descobri a verdadeira razão da minha vida: os livros”. Os primeiros livros foram recolhidos na vizinhança mesmo. “Saí pedindo de casa em casa, e todo mundo contribuiu com alguma coisa”, relembra. A partir daquele instante, segundo dona Socorro, sua vida transcorreu sobre dois eixos: “a necessidade de trabalhar e, antes de tudo, a paixão pelo que fazia”. E assim continua até hoje, quando completa, em meio a dificuldades financeiras, quinze anos de “Antiquário”. Entre as razões do aperto, dona Socorro aponta a recessão que vive o País.
“Infelizmente, livro não é artigo de primeira necessidade. As pessoas passam em frente à banca e apenas olham. Seguem direto para a Frangolândia, um supermercado logo ali. A comida é mais importante”, brinca.
Antes de ir embora, uma grata surpresa. Dona Socorro enfurna-se em um compartimento da banca que eu não sabia existir. Em poucos minutos retorna com um exemplar de O Livro dos Espíritos, de Allan Kardec, escritor que lançou os princípios basilares da doutrina Espírita. “Este livro me salvou”, diz olhando-me demoradamente. Agradeço, recebendo ainda um abraço materno.

3 Comentários

Blogger Thalita Castello Branco Fontenele said...

Poxa!No começo da leitura, eu já pensava em que vocábulos usaria para expressar meus lamentos diante da "avificina", mas agora...

Eu já desconfiava que livros salvam vidas, mas almas...!

Adorei :)

12:41 PM  
Blogger Henrique Araújo said...

Questãozinha escorregadia, essa da autoria. De qualquer forma, como me cobrassem - os mais chegados - qualquer referência ao autor (aquele que vivenciou e agora relata a experiência), decidi voltar atrás e me expor: sim, eu sou o criminoso!

3:55 PM  
Anonymous Anônimo said...

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12:33 PM  

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