quarta-feira, julho 12, 2006

Sansão e Dalila como testemunhas

Foto: Sansão Júnior
Texto: Henrique Araújo

Os dois ali, um ao lado do outro, ferruginosas testemunhas do descaso, palavra que, pelo uso, encontra-se igualmente carcomida. Na memória dos pescadores, apenas o belo casal: Sansão e Dalila, que, embora na presença de Rasputim, Titanic e outras embarcações de nomes pomposos, não conseguia esconder a vergonha. Assumia cada um sua cota de responsabilidade pelo atual estado de degradação em que se encontra o frágil ecossistema manguezal do rio Ceará, na costa de Fortaleza.

Esse, aliás, o primeiro impacto ao longo da travessia que começa ao desatracarmos, em dois barcos, do píer do rio Ceará. Naquela manhã de sábado, atestaríamos, através de suas águas, o quanto o estuário do Ceará encontra-se entregue à própria sorte. Mal-percorridos alguns metros, avistamos o que, à distância, parecia um cemitério de embarcações. Era lá, no estaleiro, onde repousavam Sansão e Dalila. E é aqui onde começa a parcela de responsabilidade compartilhada dos dois, ou, sendo-lhes justo, a de seus proprietários. Antes mesmo de alcançarmos a área mais densa do mangue, um técnico da Secretaria de Meio Ambiente do Município de Fortaleza explica: a tonalidade escura da água era devida ao óleo despejado pelo estaleiro. Poucos metros atrás, crianças saltavam sobre as ondas do rio no trecho mais próximo do mar, já no município de Caucaia. Punição para os responsáveis? Essa é outra história. Apesar de constituir Área de Proteção Ambiental-APA e de estar, em teoria, escoltado por duas leis, a verdade é que o rio Ceará nada, a bem dizer, sozinho.

O segundo impacto não demorou. Um pouco mais adiante, os vestígios da antiga salina, hoje utilizada apenas por eventuais pescadores. No local, ao nos darmos conta da ausência da flora e fauna características do mangue, percebemos que a natureza ali jamais conseguiu recuperar-se do estrago causado pelo homem. Maria Tabosa – guia turística que há oito anos percorre o mesmo trecho do rio Ceará, levando e trazendo a turistada boquiaberta – recorda dos tempos em que havia grandes pirâmides de sal naquele exato local onde hoje não há mais nada, exceto pela vegetação rasteira e estranha ao mangue.

Seguindo na viagem, avistamos grandes extensões de terra sobre as quais famílias inteiras pescavam. Nossos guias nos apresentam àquelas ilhotas, que eram, na verdade, bancos de areia, responsáveis pelo serpentear dos barcos, desviando-se de invisíveis obstáculos, ao longo do trajeto. Temos, novamente, a explicação necessária: com a pilhagem da mata costeira do mangue, cuja madeira é utilizada no fabrico do carvão e na construção de barracos, o solo torna-se frouxo, sedimentando-se no rio. O resultado contribui para que este se torne cada vez mais raso, inviabilizando a navegação e ocasionando a escassez de peixes, crustáceos e moluscos.

Além da ausência desses animais, a degradação do rio também prejudica quem ainda vive, nos dias de hoje, da pesca. Este é o caso dos índios Tapeba, habitantes das margens do Ceará há bastante tempo. Um dos representantes da tribo confirma as dificuldades que os índios têm, hoje, em conseguir retirar do mangue o alimento necessário à sua sobrevivência. A informação vira mantra quando representantes de comunidades residentes nas proximidades do estuário reforçam as dificuldades em retirar do rio o sustento para suas famílias.

As pontas, antes emaranhadas, unem-se e, aos poucos, podemos vislumbrar as várias etapas desse ciclo vicioso gestado a partir de uma lógica de desenvolvimento econômico completamente apartada do meio ambiente. Compreendemos que, tendo como principal afluente o rio Maranguapinho, um dos rios que mais recebem dejetos domésticos e industriais ao longo de seu curso até desaguar no Ceará, o rio é vítima do processo de industrialização e da ocupação irregular, tanto às suas margens quando às margens de seus tributários. Vítimas da mesma lógica que devora o mangue, levas de famílias são levadas a ocupar a região costeira do ecossistema manguezal, desenganadas com qualquer possibilidade de melhoria de vida. Não se trata de ecologiquices ou discurso político vazio. Numa perspectiva antropocêntrica, facilmente inteligível ao ser humano – a saber, aquela que o coloca como principal afetado por seus próprios atos de destruição – o ecossistema manguezal pode ser visto como um grande filtro do mar. Este é, como todos sabemos, o maior responsável pela produção de oxigênio em nosso planeta. Acabar com o mangue significa, portanto, diminuir cada vez mais a produção de oxigênio. Prenda o ar por alguns segundos ou mesmo alguns minutos. Sensação desagradável?

Ao voltar para casa, levava esta certeza: o que dizem é, infelizmente, verdade. O mangue geme, grita, esperneia. Agoniza. Pede socorro, enquanto lhe viramos as costas. O lixo é parte, hoje, desse ecossistema cuja importância, numa escala macro-biológica, muitos não conseguem dimensionar. Eu incluso. Pelo menos até o último sábado. Junto a garrafas de refrigerante e embalagens plásticas de bronzeador depositadas às suas margens, deixei um pouco de minha desinformação.

7 Comentários

Blogger Thalita Castello Branco Fontenele said...

E há aqueles caranguejinhos que pedem socorro com a pata maior, enquanto a gente olha e pensa que eles estão "chamando maré"...

Triste espetáculo.
Boa discussão.

11:44 AM  
Blogger Henrique Araújo said...

Sim, é verdade. Nosso senso de humor negro... E olhe que esqueci de dizer o seguinte: quando a gente sai do barco, difícil não pisar em alguns deles. Pobrezinhos. Acho que matei um bocado. Teria sido bem pior, não fosse a Valéria me empurrando "Olha o bixim!!!". A própria gente, cheiinha de boa vontade, acaba destruindo. E como.

11:55 AM  
Blogger Henrique Araújo said...

Outro dado importante que acabei não colocando: 90% dos caranguejos consumidos em Fortaleza vêm de Parnaíba.

12:03 PM  
Anonymous Anônimo said...

Ficou muito legal a reportagem Henrique!!!Uma crítica bem feita a falta de uma cultura ambiental! Infelizmente isso não acontece só com o Manguezal do rio Cocó e como você mesmo citou no post abaixo, o rio Parnaíba também sofre com a retirada ilegal dos caranguejos( e olhe que muitos deles não chegam vivos ao Ceará)!É o nosso verde que está sendo violado!

11:35 PM  
Blogger Thalita Castello Branco Fontenele said...

Ah sim, Parnaibinha de Nossa Senhora não-sei-das-quantas-graças...
Sou de lá, e é uma pena avisar:
minha cidade natal não consegue mais produzir a demanda de caranguejo suficiente para vocês, fortalezenses carnívoros, comerem. Eles já estão vindo do Maranhão.

Pois é.
Quinta-feira-do-caranguejo é uma piada de marketing cearense.
:)

11:51 PM  
Blogger Henrique Araújo said...

Quem dera o problema se restringisse apenas ao caranguejo, gente. Na verdade, estamos falando de todo um ecossistem em ameaça... Um bioma dos mais frágeis, imaginem isso. E o que se faz exatamente? Pouco ou quase nada. Acho que essa discussão vale muito a pena.

9:21 AM  
Anonymous Anônimo said...

Belo texto, viu?

As pessoas que vivem do Mangue, não só o do Cocó, mas nos muitos espalhados pelo Ceará, essa grande costa, o chamam de "Portal do Mar", onde rio e mar criam um ecossistema único. Foi uma das definições mais bonitas que já ouvi, conversando com um morador do Cumbe, em Aracati.

Fortaleza é cidade "Amiga da Amazônia". Todo mundo corre pra ver o barco do Greenpeace. Enquanto isso, o mangue seca, e alguém como esse morador do Cumbe fala: "Onde tinha caranguejo, só tem buraco agora". Detalhe: eles estão tendo que viver de artesanato.

3:33 PM  

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