Para aqueles que os ônibus não param
Parada de ônibus da Padre Valdivino, mais próxima da Aguanambi, sentido sertão. O sol é das 14h, quando também o solo já esquentou e ferve as cabeças dos mortais. O muro, outrora branco, reflete agora pouco a luz. Descascado. No lugar dos portões, dois buracos donde se vê a casa. Algum dia devia ter sido bonita. No quintal amontoam-se entulhos, lixo, pedaços de móveis de madeira, uma boneca. Outra vez, uma senhora que esperava o Antônio Bezerra/ Náutico disse que ali era a casa de uma mulher solitária que foi atender ao chamado da mãe doente em São Paulo. Roubaram-lhe tudo. Móveis, objetos pessoas, portas, janelas. Junto ao entulho, só o que não se aproveita – ou não deu para levar.
Quantas histórias deviam ter aquela casa. Bem localizada e daqui de fora parece grande, um modelo antigo com passarela entre um possível jardim, telhas triangulares nas pontas, feito casa de praia. Vixe! Mas está podre! Um cheiro horrível. Isso de noite como deve não ser...
- Moça, não fica muito perto dessa casa não, é perigoso. Aí é chei de ladrão. – Adverte um homem de bicicleta. E eu, aqui, sozinha nesta parada. Dei três passos.
- Posso fazer uma pergunta?
Diz um homem que sai da casa. Vestes mulambentas. Blusa esverdeada, mas de grude. Bermuda com a bainha descosturada. Japonesas. Ai, minha Virgem Maria, é um assalto. O segundo em seis meses. Que é que eu faço? Corro? Mas ele me pega...
- Pode.
- Que ônibus a moça vai pegar?
- Conjunto Ceará / Aldeota.
- Eu tô aqui com minha família, faz sete mês que vim do interior e tô sem nenhum dinheiro pra pagar a passagem, a moça podia me ajudar? Eu peço ao trocador pra passar eu e minha esposa de uma vez só na catraca.
- Eu pago – mas por medo, aliás, que por caridade.
Surge a esposa. Seis meses de grávida. Agarrados na bermuda, um menino e uma menina, 6 e 4 anos. Descalços. A menina, com o cabelo loirinho, queimado do sol, sorridente, gordinha. O menino magro, triste, quieto, sem forças.
- Mas a senhorita dê o sinal, que pra mim eles num param não. Pensa que a gente vai descer por trás.
Lá vem. Passo cada um de uma vez. Como é que ia dar pros dois na roleta, ela com aquele barrigão? Meu Passe Card tá pouquim, mas dá. Pronto, já fiz minha boa ação do dia, agora posso ir lá pra frente, sentar perto do motorista enquanto leio Foucalt pra monografia. Eles devem sentar lá atrás, não é possível! A prole do casal passa por baixo da roleta e correndo sentam do meu lado. Fica apertado. Na minha frente, marido e mulher.
- Pra onde é que você tá indo?
- Pra casa. No Conjunto Ceará.
- Vou descer no Alto do Bode.
O casal veio de Jaguaribe, Sertão Central. Antônio Neto, Ontôin, com se apresenta, trabalhava em um bar, um dos poucos comércios que sobrevivem na maioria das cidades do interior do Ceará, até ser colocado pra fora. Se meteu em briga. As claras condições o fez cometer êxodo rural com a família. Sete meses em Fortaleza. A morada? Os albergues e abrigos do Governo (não sabia se do Estado ou da Prefeitura) . No Albergues, a garantia da noite debaixo de um teto, de janta um sopão. De dia, de volta na rua. Tem um irmão no Altran Nunes, bairro conhecido como Alto do Bode devido a uma carnificina ocorrida no local na década de 80. Agora a família está no abrigo. A conversa informal, sem cunho jornalístico, não permitiu que eu anotasse o local do abrigo. E nenhuma parte da conversa que durou o trajeto até o Alto do Bode, há 10 minutos do Conjunto Ceará. Mas era para a casa do irmão que a família se dirigia.
Cláudia, “Caudinha” para o esposo, soube nesse dia o sexo do bebê. Um menino, revelou o seu primeiro exame de ultra-som de um pré-natal tardio, segunda consulta. Uma para marcar, outra pra fazer o exame. Outro menino para juntar-se a Felipe e Gabriela.
-Tem nome ainda não senhora.
Cláudia tinha pouco mais que minha idade, 24. Embora de feições pareça ter muito mais. O rosto inchado pela gestação compõem um cenário triste com os braços e pernas finas, murchas, olhar longínquo, falar pouco e cansado.
Não seria nenhuma surpresa dizer que as crianças, já em idade escola, não freqüentam escola. A menina é uma danação só. Perguntava tudo! Queria saber o que era ser estudante de jornalismo. Queria saber se ia me ver na televisão. O menino franzino escutava quieto como a mãe, ria-se um pouco da curiosidade da irmã. Ao contrário da mãe, a magreza e a pequenez fazia com que ele parecesse mais novo.
Chegada a parada. Já quase na esquina com a avenida Fernandes Távora, beirando o Genibaú. A família se despede, agradece minha caridade (melhor, meu medo). Prossigo.
6 Comentários
Angélica, gosto muito como logo no começo do texto vc é clara qto ao medo da família e a tentativa de "livrar-se dela". Essa situaçao é foda e acho q muita gente se identifica com essas atitudes de vez em qdo. Pra mim isso traz uma reflexão de imediato da condição escravizada que a violencia urbana nos impoe. Gosto da escrita, mas o final deixou algo a desejar... nao sei bem explicar, talvez a forma como vc toca novamente na questao principal do texto, que lhe motivou a escreve-lo (o medoXcaridade) ... nao sei... nao gostei muit. Falow
Texto denso, sincero, para lá de revelador de questões... Gostei muito.
Muito bom! Gostei do estilo da autora! Gosto dessa "ocultação" de palavras!! Texto enxuto e interessante, mas me prendeu muito mais pelo, como já disse, pelo estilo!!
Parabéns!!
esse negócio de medo é de lascar mesmo... foi como se eu tivesse me vendo agora...
texto muito bom..e quanto ao final..é assim que acontece, fazer o que?!... depois que o medo acaba a gente prossegue normalmente, como se nada tivesse acontecido.(mais ou menos)
gostei muito do texto, apesar de já conhecer mais ou menos essa historia. esse sentimento é bem difícil de explicra mesmo! tah muito bom angelica! explore seus talentos hehehehe :) bjs
muito envolvente. o texto.
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