terça-feira, agosto 15, 2006

CADEIRAS COM RODAS (cap. 5 e 6)


Por Raquel Gonçalves
Capítulo 5: E ainda no Papicu...

Meia noite e quinze. Chegamos os três ao terminal do Papicu. Era minha primeira vez. Estava um pouco ansiosa por saber o que naquela noite me esperava.

Enquanto aguardávamos as filas dos corujões do Grande Circular diminuir, fui sentar-me no batente com meu caderno e caneta. Os meninos conversavam sobre a produção do possível roteiro de um áudio-visual dentro do Grande Circular. Uma loirinha, baixinha e simpática moça me aborda e senta do meu lado.

- O que tem nesse caderno?
- Nesse? Ah... nada demais. Rascunho, gosto de escrever.
- Poesia? Eu adoro poesia...
- Sério... Como vc chama?

Nesse momento aquele rosto comum com dentinhos de coelho já me remetia a uma fotografia vista antes no TR.E.M.A. Era a Mônica Cavalcanti com I, já estado antes com Pedro Rocha.

- Mônica e o seu?
- Raquel, prazer...

Papo vai, papo vem... Uma e dez da manhã. Desistimos de esperar um corujão mais vazio ou os nossos outros amigos que haviam marcado de ir. Embarcamos no Grande Circular 1, rumo aos quatro terminais da cidade contemplados na rota. Mônica ficou no Papicu, depois de falar de muito amor, cobrar do Pedro uma cópia de suas fotos tiradas e seu texto produzido sobre ela. Antes de seguirmos, Bruno Xavier registrou mais imagens da doce Mônica, a pedidos dela.

Capítulo 6: A Grande Circulada

Quase que num susto, subo de imediato e num pulo nas portas entreabertas do Grande Circular. Uma e vinte da manhã. Inicia mais uma viagem na madrugada sem lua de Fortaleza.

Éramos em torno de 18 pessoas, ocupando os bancos esvaziados do Corujão. Alberto Sá, bairro Dunas rumo à Praia do Futuro. Olho aqueles casarões do bairro nobre de Fortaleza e reflito sobre a condição em que me encontro naquele momento. Medo. A violência urbana fica perturbando minha mente. Eu ali, tão exposta. Há algumas semanas, eu estava entre uma dessas casas encadeada por cercas elétricas e vigias em mais uma confraternização com amigos. E agora estou passando por elas num Corujão de madrugada. É bom perceber as coisas de vários ângulos, poder permear e viver um pouquinho as duas faces. Experiências bem distintas, porém ambas complementares.

Minha reflexão dura o tempo suficiente de perceber a primeira parada do ônibus desde que saimos do terminal. Titanzinho. As pessoas começavam a descer. Favela meio estranha. Um menino com a blusa do Congresso de Jovens Betesda desce na parada escura e segue na madrugada. O medo não tomou conta do espaço naquele momento, parece que voou junto com meu pensamento. Continuei observando a rota, aquelas pessoas e a neblina que anunciava a possível chuva. Agora seguíamos com nove.

Olho em minha volta. Sou a única mulher do ônibus. A maioria dos passageiros dormem. Somente dois homens conversam baixinho e respeitam a serenidade do ônibus. Não sei porque, mas eu me sentia segura ali.

Av. Beira Mar, depois do Porto. Uma zoada estridente rui do motor do busão. Uma súbita fumaça começa a subir e o cheiro forte de queimado assusta aos passageiros. Uma sensação reincidente toma conta de mim e eu meio que desesperada, peço para o motorista abrir a porta. Não seguiria mais naquele ônibus. O medo voltava a reinar e misturava-se com gostinho de aventura de saber que aquilo tudo se desenrolava numa viagem de madrugada pelo Grande Circular.

Paramos em frente ao Ocean View Residence. Pronto, agora era esperar o novo ônibus que ia chegar da garagem. As correias daquele já não prestavam mais. Lindo... Duas horas da manhã e nós todos num belíssimo prego.

Primeiro os resmungos coletivos. Depois, a conversa fluindo entre os passageiros. O motorista e trocador também interagiam. “As pessoas que mais pegam esse ônibus são garçons e as meretrizes da noite. Em fim de semana também tem o povo voltando da farra. Perto de amanhecer, tem os próprios motoristas e trocadores que seguem para o terminal do Antônio Bezerra para iniciar o trabalho.” A oportunidade para a aproximação foi sublime. Graças ao prego, surgiram diálogos e mais diálogos.

Gil Cleiton, casado, contabilista, mora em Maracanaú e é trocador. Cícero Romão (foto), divorciado, duas filhas, motorista desde 1979. A dupla nem sempre trabalha juntos. Cícero está fixo na linha do Grande Circular e no horário de madrugada desde que deixou de dirigir a linha Barroso – Messejana. “De madrugada é o melhor horário pra gente trabalhar. Não tem trânsito, não tem pessoas estressadas reclamando, o serviço fica bem mais fácil.” A escala de Gil é mais transitória. “As vezes a gente negocia com algum colega e troca as escalas, sem problemas. Eu também prefiro trabalhar de madrugada porque eu folgo de dia e posso ficar com minha família”.

A chuva engrossa. O ônibus novo chega. Os passageiros correndo da chuva para não despertar o sono, trocam de transporte. Todos muito aliviados. Seguimos viagem.

Cícero dirige rápido, mesmo na chuva. O diálogo fica difícil com o alto barulho do motor e com a chuva que exige atenção máxima de Cícero nas ruas. Enquanto limpo o vidro embaçado do ônibus com uma flanela... “Em chuvas grossas, a gente perde 70% da visibilidade, sabia? Existe uma técnica para não deixar o vidro embaçar. Você coloca fumo e galho verde no pé do vidro que aí não embaça não.”

Depois de seguir pela Leste-Oeste, passar pela Barra do Ceará, a cidade começa a ficar estranha para mim. Não conheço mais os bairros, nem muito menos as ruas. Tudo fica diferente, até o cheiro da cidade vai mudando. Chegamos ao terminal do Antônio Bezerra. A frota de passageiros se renova. E continuamos seguindo viagem.

“Eu gosto mesmo é de dirigir ônibus, apesar de mais cansativo. Durante dois anos dirigi caminhão, na estrada. Era uma maravilha em relação ao sossego da estrada. Mas é muito perigoso. Já vi acidentes graves na estrada. Os acidentes dentro da cidade com os ônibus são simples, geralmente sem vítimas. Na estrada, são bem mais graves, quase sempre com vítimas fatais.” As histórias vão rolando enquanto cruzamos a cidade rumo ao terminal do Siqueira. Já desconheço totalmente o trajeto. Um de meus amigos já dorme em sono profundo. O outro, conversa com Gil, lá trás do ônibus.

“Com esse prego, atrasaram meus horários. Geralmente temos meia hora no terminal do Siqueira, mas hoje com essa chuva e esse prego, tomamos um café em dez minutos e seguimos” Ótimo, acompanho você. No Siqueira, pouco movimento. Não sei que horas eram. Um cheiro de pão fresquinho sugere um ótimo acompanhamento ao café. Descemos e, conversando, tomamos um café no quiosque do terminal do Siqueira.

“Na estrada não tem o trânsito, mas a gente dirige muito mais tempo também. Tinha épocas em que eu fazia viagens para Teresina de noite, passava o dia descarregando o material lá da empresa e voltava na noite seguinte. Sozinho, umas 10 horas de viagem seguidas, sem dormir, em cada trecho. E eu nunca tomei nada dessas coisas pra ficar acordado” Compro um pãozinho para o meu amigo que dorme, ainda dentro do ônibus. “Vamos lá que já está na nossa hora”. Seguimos para o terminal da Messejana.

O fluxo já é bem inferior que o início da viagem, apesar de quase amanhecer. Passamos pelo terminal da Messejana. Ninguém sobe, ninguém desce. “O próximo já é o do Papicu”.

Quatro e cinqüenta. Chegamos no terminal do Papicu de volta. “Raquel, me dá o site de vocês porque minha filha às vezes olha. Tanto a historiadora como a engenheira gostam muito de ler”.

Mônica já não estava mais por lá.

1 Comentários

Anonymous Anônimo said...

Muito bom! Senti como se estivesse dento do busão com vocêis, e uma puta curiosidade de conhecer os becos mais escondidos de Fortaleza. Aê Raquel, se vier até Goiânia, não deixe de fazer um tour pelo nosso corujão, garanto uma ótima experiência. Até mais!

1:29 AM  

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