quarta-feira, março 28, 2007

[série epistolar]


Aí vai minha resposta que não é bem resposta.
Caro Henrique,
você já parou pra se perguntar para que servem as faixas de pedestres? Eis que estive cismado com isso hoje, após um carro ter parado para eu passar com osinal verde. Foi estranho. Pensei ter acontecido algo quando vi o automóvel parado. Continuamos parados, eu e ele. Apenas o sinal em movimento para fechar.

Depois de alguns segundos atravessei a rua, e ele se foi. Nunca havia percebido utilidade nas faixas da cidade. Elas ficam ali estancadas debaixo dos sinais e os transeuntes só a usam quando o vermelho obriga. Por muito, pensei serem apenas faixas de enfeites para dar um pouco de brilho nas noites iluminadas pelas casas dos mosquitos. Quando chove à noite, também, as faixas ficam bonitas, molhadas pelo caldo frio do asfalto, dá vontade de pedir pra nunca mais parar.

Suponho que o motorista seja estrangeiro. Não consegui ver a placa. Mas quem não é estrangeiro nessa Fortaleza de calor, de contrastes e de fascínios. Eu mesmo me sinto descolado em vários cantos dessa cidade, ao mesmo tempo em que gosto de pertencer a ela. É algo interessante. A imagem parada de uma galinha esfolada em público me choca. As cores populares ganham um ar cult porque foi fotografado pelo Celso de Oliveira. E que olhar colorido, parece até de mentira. É interessante. Gosto de imagens grandes e cheias espalhadas pelas paredes de um centro cultural. Não precisa de cerca para torná-las inalcançáveis.
E fico pensando o quanto nós conseguimos dialogar em nossa cidade com a sabedoria popular e o ar arrogante dos intelectuais pensantes. E passeando por uma cidade mais antiga, percebo o quanto nós vivemos disso. Toda a nossa Fortaleza, o nosso Ceará se sustenta em cima de um olhar épico-romântico sobre a sabedoria popular, seja contemporâneo ou não. É bonito. São tantas crenças, tantos chavões, tantos mitos, tantos emigrantes e imigrantes. Fortaleza é um cenário de passagem eterna, nem que seja apenas no desejo. As pessoas que aqui ficam sonham em ir para longe. As pessoas de fora, imaginam que a beleza de um reflexo solar no suor pingado da orelha é inodora. Os que se vão – e não são poucos – sentem saudade, mas não voltam, ficam a proferir saudades compartilhadas.
Tão confusa essa minha cidade. Ela me expulsa a todo instante. Sinto sempre uma vontade enorme de voltar, mesmo sem nunca ter partido. Mas admiro essa cidade, mesmo tendo que esperar os sinais fecharem para eu atravessar a rua. Para só depois esperar pelo ônibus que nunca chega, muito menos vazio. Esperar pelo progresso. Esperar pela civilização. Esperar pelo reconhecimento. Esperar é nosso verbo. É sem dúvida um lugar incrível, no sentido literal da palavra. Fortaleza é uma farsa construída apenas nas bocas de seus moradores. Ela não existe. Ela já nasceu como uma metáfora que aos poucos se transformou numa hipérbole e pela sua repetição dita saudável já se tornou uma grande ironia. Ela reúne todas as figuras, principalmente a anáfora.
Já não agüento mais. Para não ficar cafona, me disperso. Semana que vem estarei no Benfica, e de lá mando notícias.
Abraço grande,Tiago

sábado, março 24, 2007

[série epistolar]


Aos amigos e amigas,

Dou notícias. Hoje é segunda-feira, 19, dia de São José. Fez sol na cidade, sim, muito calor. Na rua, lama. Ela esquenta e evapora rapidamente. À tarde, apenas algumas poças. Os meninos já podem jogar bola novamente. Ao menos até a próxima chuva, quando tudo volta a se encher.

Estou morando entre cães e gatos e vizinhas histéricas. Em frente, uma oficina de materiais recicláveis. Estão padronizando os carros da oficina. Antes, eram todos diferentes, cores e formatos. Menos os homens e mulheres que empurram das cinco da manhã às cinco da tarde. Esses, continuam os mesmos. Hoje, à exceção de um mais sofisticado (carrega som e se serve de um toldo para fazer sombra), todos foram pintados de marrom e numerados. Batem ponto, inclusive. Para as crianças da rua Mansidão, os carrinhos e os cacarecos que trazem na barriga são a grande atração. Muito ferro retorcido pode se converter num fantástico brinquedo nas mãos de um garoto. Da vela de um carro, fazem um míssil. Que pode atingir as casas e apartamentos mais distantes, sossegados do outro lado da cidade.

Outro grande barato para a criançada: uma velha louca que corre e grita, as mãos carregadas de sacolas, e cai no chão. Ela é pequena e muito enrugada; quando cai, encaracola-se ainda mais. Nessas ocasiões, chega a ficar horas sentada com a cabeça enfiada entre as pernas, chorando e babando. Todos passam por ela; ninguém liga. Curiosamente, eu tenho medo, e fico apenas olhando de longe. É um medo de criança, duro de morrer.

Meus caros, tantas coisas a dizer... e não apenas da geografia urbana, da passagem do tempo ou dos últimos programas de televisão; ou, ainda, daquilo que ontem foi notícia nos jornais daqui. Como escrevo depois de muito tempo, e para pessoas que me cativaram, a vontade era de dizer outras coisas. Na verdade, queria falar do sub, e acabo esbarrando no raso que sou.

No meio disso tudo, me permito um desabafo. Sabem as pessoas, essas que nos cercam? De uns tempos pra cá, têm me enchido. O suficiente para pretender deixar tudo, estudos e trabalho, e voar para o interior, criar galinhas, cuidar dos patos, lavrar a terra. Mas não sou lavrador. Escrevo. E escrever não ganha a vida. Por isso vou ficando e ficando, vendo os meninos forjarem traves com os tijolos e garrafas de plástico, esfolarem parte dos dedos num chute que, em vez da bola murcha, acerta a pedra que se ergue traiçoeira do calçamento. Esses meninos... Também esfolei muitos dedos na infância. Mas ganhei outras coisas nessas mesmas ruas de lama e pedras. Tanto tempo depois, vejo o saldo. Que não se mesura, apenas suspeita-se.

Falo rapidamente da saúde, mental e física. Estive muito mal, em falso no mundo. Como uma mesa sem duas de suas quatro pernas. Também dores de barriga, digo, no estômago, e mais um bocado de outras tantas coisas que nem sei se vale realmente a pena. Mas eu digo. Acho que vão entender, ou não, por isso digo. Meus amigos, fiquemos em silêncio.

Espero que estejam todos muito bem. Espero. Porque esperar é, às vezes, a única coisa que podemos fazer.


Abraços,

Henrique Araújo