sexta-feira, junho 30, 2006

Xico Sá ensanduichado


Já tinha comprado a Revista V antes - talvez de nome mais apropriado WV -, revista da Wolkswagen de diagramação muito boa e bem pautada, apesar de suas capas sempre tratarem de um artista global ou coisa parecida. E claro!, não poderia faltar, matérias sobre o Gol, o Polo...

A Denise Fraga, capa da edição 18, não atraiu até que eu li na última chamada de capa o seguinte reclame: "McBode: Xico Sá incorpora a tragicômica vida de um homem-placa". Aha! Tudo a ver com nossa proposta do anônimo, da invisibilidade, na escrita desse jornalista, rebento do Cariri, radicado no Recife, irradiado pelo Brasil em jornalões como Folha de SP e hoje freelance em revistas como Trip, Tpm e Revista V. Além de também ser Blogueiro, escritor e o carai de asa...

O texto que o TR.E.M.A. reproduz integralmente - violando os direitos autorais sem fins lucrativos - é o que Xico Sá faz de melhor: a representação da realidade que trânsita entre o ridículo e o existencial. Tragicomédia que burla o vício da romantização da realidade.

Aqui está

pedro rocha

terça-feira, junho 27, 2006

Cineasta mostra o drama dos sem-teto

Conforme havíamos dito anteriormente, o grupo TR.E.M.A. passa a publicar produções de outros meios de comunicação que levantem questões com afinidades ao nosso perfil. Na entrevista a seguir, feita por Thais Arbex Pinhata e publicada na edição de número 172 do jornal semanal Brasil de Fato, o cineasta Toni Venturi apresenta, por meio de seu ofício, uma problemática extremamente urbana: a questão da moradia e a de vários cidadãos e cidadãs que lutam por um teto. O filme Dia de Festa fala especificamente do Movimento dos Sem-Teto do Centro de São Paulo (MSTC). Aqui em Fortaleza, desconhecemos algum movimento que discuta a especulação imobiliária. Caso você conheça um grupo organizado semelhante, entre em contato conosco: grupotrema@gmail.com. Segue a entrevista:

Venturi transformou em registro histórico – e em arte – sete ocupações urbanas, em São Paulo

Thais Arbex Pinhata
de São Paulo (SP)


“A partir do momento em que a realidade foi para a tela, o Movimento saiu da luta e mostrou para a classe média o que é a vida dos excluídos”. Ivaneti de Araújo, a Neti, de 33 anos, mãe de três filhos e coordenadora geral do Movimento dos Sem-Teto do Centro de São Paulo (MSTC) conduz – ao lado de Silmara do Congo da Costa, Janaína Cristina da Silva e Ednalva Silva Franco – a narrativa do documentário Dia de Festa, co-produção Brasil-França lançada em abril. Resultado da parceria entre o arquiteto franco-argentino Pablo Georgieff e o cineasta brasileiro Toni Venturi, o documentário narra os preparativos das sete ocupações simultâneas realizadas na cidade de São Paulo no dia 1º de outubro de 2004.

Em 2003, Georgieff, pesquisador de soluções de moradia para populações de baixa renda em todo mundo, e sua companheira Samantha Longoni, uma das produtoras do documentário, estiveram no Brasil para conhecer as ações do MSTC. Foi dessa experiência que nasceu a idéia de Dia de Festa.

Para a direção do filme, Georgieff e Longoni convidaram Toni Venturi. “Aceitei imediatamente. A proposta estava totalmente alinhada com os meus interesses, com os meus filmes, com as minhas preocupações, com o estilo de cinema que eu venho desenvolvendo. Um cinema que aborda questões políticas, sociais e históricas”, diz o cineasta. Nesta entrevista ao Brasil de Fato, Venturi fala de seu filme e das injustiças sociais.

Brasil de Fato – Como o MSTC aderiu à idéia do documentário?

Toni Venturi –
Nós fizemos contato com eles, antes de começar as filmagens, em 2004. Eles aderiram de cara. Desde o princípio, deixamos evidente quais eram as nossas intenções. Houve confiança recíproca. E o resultado foi feliz para todos – tanto para o Movimento, quanto para nós.

BF – Como se deu essa relação de confiança entre a produção e os integrantes do MSTC?

Venturi –
À medida que começamos a fazer parte da realidade deles, e eles da nossa, ficamos mais “invisíveis”, e eles mais à vontade. Isso foi uma conquista do filme. E também teve a ver com o jeito com que eram feitas as filmagens: era a câmera, o som e eu; e, às vezes, era a câmera, o som e o Pablo (Georgieff). A gente tinha o mínimo necessário para conseguir alta qualidade de som e imagem. O importante era a autenticidade.

BF – Quando surgiu a idéia de ter as histórias das quatro personagens como fio condutor do documentário?

Venturi –
O Movimento dos Sem-Teto do Centro de São Paulo, assim como outros movimentos, são bastante matriarcais. As bases são as mulheres. Existiam outras coordenadoras, naturalmente, mas eu escolhi as quatro personagens – Neti, Silmara, Janaína e Ednalva – por apresentarem características, idades e jeito de ser diferentes, e para dar um aspecto mais amplo do que elas representam.

BF – Para quem assiste ao documentário, fi ca evidente que os momentos de maior tensão são os dias das ocupações.

Venturi –
Sem a menor dúvida. Mas a logística disso foi muito complexa. A gente não sabia quando, nem onde iriam acontecer as ocupações. Para que não vazasse e chegasse à polícia – eram, naturalmente, informações secretas, a não ser para alguns coordenadores do Movimento. Nós não conhecíamos também, éramos avisados, a cada dia, para nos prepararmos porque o dia se aproximava. Como nunca havíamos passado por algo parecido, nos organizamos para uma verdadeira batalha campal: compramos botas especiais, mochilas com kits básicos de sobrevivência – comida e cobertor. Em um determinado momento, é claro que o medo e a apreensão tomaram conta de todo o grupo. Ao todo, foram sete ocupações. Mas nós tínhamos quatro equipes de filmagens, por isso escolhemos acompanhar as ocupações em que estavam as nossas personagens.

BF – Como foram os confrontos com a polícia? Em algum momento a equipe do filme sofreu repressão?

Venturi –
Os confrontos foram, com certeza, os momentos mais difíceis da filmagem. Em nenhuma ocasião a polícia teve qualquer atitude de repressão em relação à equipe. Nós usávamos coletes que, mesmo sem ter nada escrito, nos identificavam como pessoas que não pertenciam ao Movimento, mas que estavam apenas registrando. Houve muito medo, muita confusão, muita correria. As balas perdidas e, mesmo as de borracha, podiam cegar. Havia também bombas de gás lacrimogêneo, de efeito moral e gás de pimenta: tudo isso apavorava.

BF – Como se davam as ocupações?

Venturi –
O MSTC ocupa prédios vazios, públicos ou privados, que estão abandonados há muitos anos, com graves problemas de impostos, por exemplo. Essa é uma estratégia para obrigar as autoridades municipais, estaduais ou federais a lidar com a questão da moradia. Esse é o objetivo das ocupações. Algumas são muito vitoriosas porque obrigam e exigem ações do poder público e, a partir de convênios com a prefeitura, com o Estado ou com a federação, o Movimento faz empréstimos, consegue comprar o edifício, reformar e transformá-lo em uma habitação digna para o morador sem-teto.

BF – As ocupações são violentas?

Venturi –
Esse processo não é nenhuma guerra em que homens atacam homens. Os sem-teto ocupam o edifício, a polícia e a tropa de choque vêm proteger a propriedade. Os sem-teto não se jogam contra a polícia e a polícia não se joga contra os semteto – a não ser que eles tentem invadir a propriedade privada. Na verdade, os policiais são povo como eles e tão pobres quanto eles, mas estão defendendo o sistema. É violento, sim, há dor, medo, a polícia tenta dispersar os sem-teto, mas é importante ressaltar que eu não vi nenhuma truculência da polícia contra o ser humano. Na Constituição brasileira consta que qualquer imóvel subtilizado ou não utilizado pode ser colocado à disposição da desapropriação porque o imóvel existe para ter uma função social. O MSTC ocupa imóveis abandonados há 15, 20 anos. Não se pode dizer que esses imóveis têm alguma função na sociedade.

BF – Dia de Festa pode ser visto como um filme-denúncia?

Venturi –
Acho que não. Ele transcende essa questão. Ele tem, obviamente, uma denúncia a respeito de uma realidade invisível, que a classe média brasileira desconhece. A idéia e a imagem que a mídia faz dos sem-teto é de que eles são um bando de desocupados, desempregados, mulambentos. Na verdade, o que existe é um enorme preconceito. O filme fala disso: do preconceito de classe. A classe média – os que tiveram oportunidades, os formadores de opinião, os que têm um teto para morar e que se alimentam três vezes ao dia – têm um enorme preconceito contra o pobre. Dia de Festa mostra os sem-teto como pessoas reais, humanos sensíveis, de valor, com honra e dignidade. O filme é mais do que uma denúncia, é uma reflexão sobre um país que tem milhares de injustiças sociais e que precisa pensar sobre isso. Todas essas questões sociais, do preconceito, do racismo, da violência têm origem na desigualdade, na pobreza, na falta de oportunidade. Enquanto o Brasil não olhar profundamente para questão social, teremos os PCCs, essa violência rompante das cidades.

BF – O documentário foi rodado em 2004 e lançado em 2006. Como foi a pós-produção?

Venturi –
O documentário foi rodado no final de 2004 e, em 2005, o finalizamos. Um documentário desse caráter, longa-metragem com uma proposta não-jornalística e mais narrativa, exige um tempo de pensamento, de tentativa e erro e de reflexão muito maior. Além disso, o lançamento demorou também por causa do financiamento. Com o documentário já na lata, a gente foi atrás de patrocinadores. Conseguimos o apoio do Fonds Sud Cinema – um programa do governo francês de incentivo ao cinema da África, da Ásia e da América Latina – e da Petrobras.

BF – Você acabou de voltar do 59º Festival de Cannes. Como o cinema brasileiro é visto pelo mundo?
Venturi –
Para ser bem sincero, o mundo não vê cinema brasileiro. E isso não é nenhuma novidade para quem faz parte do meio. Podemos dizer que estamos começando o ano 1 do cinema brasileiro, em que ele volta a ter uma ação institucional, coletiva e mais abrangente. Até então foram ações pontuais e muito individuais: O Quatrilho, quando foi indicado ao Oscar, em 1996; Central do Brasil, quando foi o vencedor do Festival de Berlim, em 1998; Cidade de Deus, quando indicado a quatro categorias do Oscar 2004. Agora se pensa em ações para levar o cinema brasileiro ao exterior. Esse trabalho, que é de médio prazo, deve surtir efeito daqui a uns cinco anos.

Quem é
Toni Venturi

Paulistano, nascido em 1955, Toni Venturi é bacharel em Cinema pela Universidade de São Paulo e em Artes Fotográficas, pela University of Ryerson, Toronto, Canadá. Em seu currículo, somam-se nove produções, das quais quatro são curtas-metragens: Under the table, de 1984; Sem fronteiras, Rio-Leningrado, de 1988; Guerras, de 1989; e 1999, de 1992. Em 1997, Venturi roda o primeiro longa – O Velho, a história de Luiz Carlos Prestes. Com o documentário recebe os prêmios de Melhor Filme Brasileiro no 2º Festival Internacional de Documentários – É Tudo Verdade, SP/RJ, 1997; Melhor Documentário no 5º Festival de Cinema e Vídeo, Cuiabá, 1997; e Resgate Cultural e Histórico da APCA 97 (Associação Paulista de Críticos de Arte). Com o longa- metragem Latitude Zero, recebe o prêmio de melhor roteiro no 33º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, 2000; Panorama / Seleção Oficial no 51º Festival de Berlim, 2001 e melhor direção no 5º Festival de Cinema Brasileiro de Miami, 2001. Em 2004, dirige Cabra-Cega, filme de ficção sobre o Brasil dos 1970. Em 2005, o filme recebe seis prêmios no Festival de Brasília.

domingo, junho 25, 2006

Em festa de barão também se põe a mão


Por Raquel Gonçalves

- Amiga, vamos numa festa bem diferente hoje. Tem coragem de dar? 45 reais mulher, 75 homem. Open bar, tudo liberado, num hotel cinco estrelas na Beira Mar.

-É..., caramba, vou não, muito caro.

- Beleza, vou comprar nosso ingresso, te pego na tua casa umas 11 horas, beijo!

- ... ... ...


Em trajes de seda e sandálias douradas, chegamos na ‘festinha’ de barão. Na porta do hotel, o amigo da minha amiga entrega as chaves da L-200.

- O estacionamento é dez reais com manobrista. Preço único da noite.

- OK, pode levar.

Na entrada, uma recepção realmente cinco estrelas. A sandália fina mal fixava no chão de granito encerado e escorregadio. Homens engravatados e mulheres cintilantes cumprimentavam os primeiros convidados da festa e indicavam o salão real. “Just on the list”. Na porta, recebemos uma pulseira de livre acesso com o nome da festa. Pronto, aquele ícone que envolvia meu braço permitia comer, beber e usufruir do espaço até as seis horas da manhã. Champanhe, vinho, cerveja, água, refrigerante a vontade. Smirnoff e Red Label também faziam parte do cardápio. No buffet, salgados, canapés, patês, tortilhas em três espaços diferentes da festa, era só chegar e servir-se. Ops! É bom lembrar: só quem estivesse com a pulseira mágica. Afinal, um segurança em cada mesa ali estava.

Meia Noite

-Eu preferia fazer uma festa na minha casa com 75 reais. Pra vocês até que vale por 45, mas pra gente....

- Pára de reclamar, agora já ta aqui, vê se se diverte.

- É... então..vamos beber...

O espaço ainda vazio. As poucas pessoas que até então ocupavam o salão iam se amontoando em volta dos três bares. Na pista de dança, as luzes ocupavam o espaço com três ou quatro pessoas.

Verde

Batida

Branca

Câmera lenta

Azul

Bola de cores

Vista lenta

Vermelho,

Fecha os olho

Amarelo

Vibração

Álcool na cabeça

Uma e meia. Salão lotado. Mesas do buffet ainda quase que intocadas. A elite jovem cearense mostra-se super ‘educada’. Não sei quem era o mais controlado para não ter ainda ido atacar os quitutes.

As horas vão passando e as pessoas cada vez mais “felizes”. O álcool vai tomando conta. A imprensa entra em ação, não pode deixar de registrar as ‘privês’ cearenses. Vários sites registram os jovens. Mas não ao natural do divertimento de uma festa ‘open bar’ e sim, todos muito comportados, sorrindo aos flashes. A Tv União e o Must não podiam ficar de fora. Haidar e Natalia Nara também compõem o cenário.

A Dj loirinha, maquilada, estrangeira entra em cena... não sei mais que horas eram. As coisas começam a ficar mais lentas e engraçadas... acho que começo a me divertir.

Olho para o buffet, mais parecia um formigueiro. Bêbados esfomeados devoravam os quitutes da “Just on the List”. Vejam só.... não disponibilizaram talher. Lindo. Os jovens da elite cearense bêbados devorando comidinhas com as mãos num hotel cinco estrela da Beira Mar. Quanta hipocrisia...

No banheiro, conhei Valéria. Seus olhos vermelhos me chamaram atenção. Mas aqueles não eram olhos de bêbadas ou de droga alguma. Valéria estava cansada, trabalhando no banheiro feminino desde as sete da noite. Não sei, mas já devia ser umas quatro e meia da manhã. Olha que engraçado, tanta comida para o povo da pulseirinha mágica e não alimentaram os funcionários. Idéia burra, eles podiam se revoltar contra os patrões e roubar um presuntinho debaixo da blusa. Conversamos uns 30 minutos. Não lembro bem os detalhes. Eu me dirigi ao buffet, enchi meus bolsos de pães finos e tortinhas, sorri para o engravatado, e passei para o banheiro. Afinal de contas, eu tinha a pulseirinha mágica.

Volto para a pista e meus amigos já me procuravam... Cenas meio vagas na minha memória desse final sombrio.

- Vamo nessa, já ta amanhecendo...

sexta-feira, junho 23, 2006

[Sem Título]

Por Henrique Araújo

Fome, sede, pernas bambas. Enegrecidas pelo manuseio diário das páginas de jornais, as mãos deixam marcas nos assentos da van, que segue em frente em seu ritmo alucinado. A ambulância pilotada por Nicolas Cage num filme de... Começa com “F” ou “M”, mas agora não lembro. Me sinto, por instantes, parte de um road movie à brasileira ou qualquer coisa parecida. No lugar dos psicotrópicos, alucinógenos e congêneres, fome. Tontura em vez de glamour. Assim a rotina acontece.

Tonturas. Há duas semanas ou mais. Vêm e vão sem maiores explicações. Atribuo tudo à fome. Afinal, já passava das 13 horas. No estômago, nem sinal do longínquo café-da-manhã – modo pernóstico de dizer café com pão e manteiga, por vezes uma fatia de queijo ou presunto. Nada de frutas ou leite. Creme com bolachas. Cereal no pratinho ou iogurte. Apenas café com pão e manteiga. Margarina. Queria Geléia de Mocotó, mas o dinheiro não chega. “Não chega”, digo e repito. Ninguém acredita. Onde a botija?! Na puta que te pariu.

Avenida Pontes Vieira. Começa quando termina a 13 de Maio. Termina quando começa a Virgílio Távora. Ao longo do percurso: Assembléia Legislativa, Boi do Sertão, Clínica São Mateus, etc. Concessionárias. Padarias. Pela manhã, cheiro do pão quentinho. A contragosto, olho. Gosto. De pãezinhos, quatro ou cinco, embrulhadinhos na sacola. Mamãe feliz, papai mais ou menos. Tudo muito bem temperado em verde e amarelo. Que é Copa do Mundo. Brasil na cabeça. E na barriga? Gooooooool, grita seu Tavares, antes de cair de braço no cabo da enxada.

Ainda na Pontes Vieira. Muito bonitinha, a avenida, lhe faltando somente algumas árvores. Lugar fantástico, sempre passo olhando: Revistas e Cia. Coisa de quando ainda era menino. Tem também uma pastelaria com cara de lanchonete de terminal. Gosto dela assim mesmo, terminal. Um pastelzinho terminal para um jovem terminal. Um pouco mais adiante, o shopping center Iguatemi. Órgão implantado e rejeitado pelo ecossistema manguezal. Se me perguntassem, seria cáustico: não parece mesmo com um siri anabolizado? Ganhou vida e engoliu o mangue, doravante descartável.

Corte pra van, à mil comendo o asfalto ondulado da Pontes Vieira. Comendo. Alguém tem que fazê-lo. Pelo menos estou sentado. Se desmaiar, pensarão “dormindo, o pobrezinho”, ou, simplesmente, coisa alguma dirão. Prefiro assim. Inaudito. Desdito. Não desmaio ou durmo. Sempre bem acordado, mesmo dormindo. Em volta, cenário made in Monet: rostos bonitos, brancos. Porte esguio, atlético. Marcas do bronzeado custoso. No final das contas, tudo vale a pena, cada centavo investido nas curvas ou no bíceps bem-aquinhoado. Cada centavo. Modéstia à parte, somos bons no que fazemos de melhor – ou seríamos melhores no que fazemos de bom?! O fato é um só: rapazes e garotas, meninos e meninas, tudo não passa duma grande curtição, e Deus, claro, um grande gozador.

Abrupto, final de linha. O cobrador pergunta: esquerda ou direita? Embora, na prática, não faça tanta diferença, digo moro à esquerda, em seguida salto com os olhos pregados no chão. Evito todos. Não olho nos olhos. Todos os dias o mesmo trajeto. A mesma fome acompanhada de tonturas, suor e pernas bambas. A mesma fome. Por vezes, a barriga cheia, ainda assim persiste, faminta, a fome. Sou um prato cheio, sei muito bem disso.

quarta-feira, junho 21, 2006

Vai mudar...

Depois de um processo de reformulações, feito menino com frivião na bunda, o TR.E.M.A. se mexe mais uma vez daqui pra lá, de lá pra aculá, nessa cadeira justa que ainda é o blog pra gente.

Pretensões têm muitas e depois a gente vai mostrando aos poucos o que o grupo tá pensando e começando a executar nas próximas semanas. Pra não se fazer de difícil, a gente apresenta a proposta de um blog diferente, que continua sendo o principal veículo de escoamento da produção do grupo, mas de forma diferente, mais dinâmica, já meio enciumado com um site -uma cômoda cheio de gavetas e outros paramentos - que virá nos próximos meses, coisa pra se contar nos dedos de uma mão.

O blog agora abrigará, além das reportagens, posts menores, mais dinâmicos e de freqüência quase diária. Espaço para percepções inquietantes sobre o dia-a-dia de Fortaleza, comentários sobre a convulsão passiva dessa cidade, sua poética, sua brutalidade... Espaço também para produções não jornalísticas, mesmo ficcionais, que reflitam sobre a cidade e que tragam outros olhares sobre o mundo anônimo que o TR.E.M.A. propõe.

Outra coisa que terá abrigo no blog, essa marquise nesses dias nublados de existência urbana, é a difusão de produtos culturais produzidos por outras pessoas e veículos que não o grupo. Sempre com o olhar obsessivo da cultura e suas problemáticas. É daí que a gente convida aos leitores desta espelunca de tom poético refinado em alguns casos, vulgar em outros tantos, que se tornem colaboradores e que a gente pense em conjunto - como a de ser o caminho para uma transformação – essa selva de pedra, fortaleza.

Saudar também aos chegados de poucos dias no grupo: Clarissa, Bruno, Angélica, Débora e Davi. Este último estudante de filosofia, o primeiro não-estudante-de-jornalismo a se integrar ao grupo.

Valeu pessoal, o reforço é essencial. Vamos conspirar em público.

segunda-feira, junho 05, 2006

Espiritismo e Frangos Abatidos


Texto e fotos: Henrique Araújo
Era madrugada. Sendo ou não a primeira vez, a verdade é a mesma: a faca desliza pelo pescoço fino, e eis o sangue a correr viscoso e quente através das penas. Há outra alternativa, esta mais espetacular: torcer-lhe o pescoço com as próprias mãos. Depois é só assistir às piruetas e volteios do animal. Mas, no caso de dona Socorro, não havia tempo suficiente para desfazer-se em considerações acerca da vida e da morte ou mesmo deliciar-se com a capacidade de matar da qual somos dotados. Eram dezenas de frango na fila de espera, todos aguardando pacientemente o contato suave de suas mãos. Dona Socorro, uma senhora de olhos azuis e rosto amável, era uma amadora quando começou. “Nunca tinha matado um frango na minha vida”, uma ponta de culpa nas palavras. Depois de mortos, arrancava-lhes as penas, mergulhando-os em água fervente. As vísceras eram retiradas através de um corte profundo na base do frango. À espera delas, gatos. Roçando-se nas pernas de dona Socorro ou empoleirados nos muros, acompanhavam, toda noite, o desenrolar do abate.
O nome completo é Maria do Socorro Carneiro de Moraes. Tem 63 anos e há 43 mora na Parquelândia, bairro de Fortaleza cuja história se confunde muitas vezes com a dela. Dona Socorro, como é conhecida de todos, não se surpreende quando, numa quarta-feira de dezembro de 2005, entre livros folheados ao acaso e perguntas desconcertadas, revelo a finalidade da visita.
“Vim entrevistar a senhora”, pensamento logo seguido da pergunta, verbalmente expressa, “posso dar uma palavrinha com a senhora?”
A tarde apenas começava e dona Socorro, apontando um banquinho de madeira, pediu-me que sentasse. Foi relembrando um pouco esses dias de ontem e hoje que deu início a uma conversa que se entendeu por quase toda a tarde, somente interrompida, em alguns momentos, por clientes à procura de livros e catadores de lixo que lhe traziam pilhas de Cláudia, Veja e Caras esfarrapadas. “Se não fosse por mim, estas revistas iriam pro lixo. Também compro pra ajudar”, explicou-se depois que um negro esquálido, curvado sobre um carrinho-de-mão cheio de papelão, foi embora.
E foi também numa quarta-feira, a última de maio de 2006, que a visitei novamente. Desta vez, fui recebido como um velho amigo a quem dona Socorro há muito não via. Sentamos nos mesmos bancos de madeira, agora à esquerda da banca de novos e usados. “É que de manhã o sol bate lá daquele lado”, explicou.
Há 15 anos à frente de Antiquário, banca de livros e revistas que fica na Praça da Igreja Redonda, dona Socorro é dessas que fincam pé quando querem alguma coisa. Quando pensou em trabalhar, foi como se tivesse entrado em rinha de cachorro grande. E foi realmente desta matéria-prima que dona Socorro tomou para modelar a própria vida: teimosia. De um lado, o pai e sua carranca; do outro, o noivo cuspindo reprimenda às aspirações da futura mulher. No meio, a aparência frágil de dona Socorro. Premida pelas circunstâncias, casou e foi cuidar da casa, dos filhos e do agora marido, Sr. Walter. Tudo, a bem dizer, calculado. Queria mesmo era fugir do jugo familiar, encarnado na figura paterna. Acabou esbarrando na figura não menos rígida do marido.
“Sempre quis trabalhar, o pai é que nunca permitiu. Mulher para ele era da cozinha pro quarto, e só. Quando casei e vim morar aqui na Parquelândia, em 1962, a cabeça do marido era a mesma; a discriminação contra a mulher, também. Queria estudar Direito, mas acabei me submetendo”, diz entre risos.

Mas, pergunta recorrente, como chegou mesmo a vencer as resistências e conseguiu trabalhar?! Dona Socorro esclarece rápido: “necessidade”. Entre uma atividade e outra, ela garante que fez de tudo um pouco, um bocado: foi costureira, sacoleira, proprietária de uma agência de publicidade e transportou, ainda, alunos de escolas da vizinhança. Catou alimentos em feiras livres da capital. Nesta época, a cabeça, segundo ela, “já tinha parado de funcionar”. Tudo por causa dos frangos abatidos ao longo da madrugada no quintal de casa.
“Fornecíamos frangos ao Hospital Antônio de Pádua, que hoje nem existe mais. Nunca tinha matado um frango na minha vida. Comecei mesmo por necessidade. Foram quase dez anos abatendo frangos. Como tínhamos de entregá-los de manhã muito cedo no hospital, passava quase toda a madrugada abatendo”, relembra emocionada.
“Foi quando a senhora entrou em depressão...”
“Foi. A partir de certo momento, percebi que morria a cada animal abatido. Foi a pior coisa que já fiz em toda a minha vida”.
Dona Socorro esclarece. Após cerca de dez anos trabalhando como açougueira, caiu em uma espiral de crises: financeira, psicológica, religiosa, emocional. “Minha vida era um conflito. O Walter, meu marido, foi embora pra São Paulo no final dos anos 70. Fiquei sozinha”. O episódio funcionou como uma espécie de divisor de águas em sua vida. Mudou radicalmente os seus hábitos alimentares, passando a não comer mais carne animal, e descobriu na doutrina Espírita um refúgio. A banca, encontrou-a pouco depois, quando estava à procura de trabalho.
“Era o que eu precisava. Depois de conseguir a concessão para trabalhar na banca, fui para lá sem nada, porque as distribuidoras não queriam fornecer revistas para outro estabelecimento, sendo que já havia um na praça. Então comecei só com as revistas que tinha em casa, e foi quando descobri a verdadeira razão da minha vida: os livros”. Os primeiros livros foram recolhidos na vizinhança mesmo. “Saí pedindo de casa em casa, e todo mundo contribuiu com alguma coisa”, relembra. A partir daquele instante, segundo dona Socorro, sua vida transcorreu sobre dois eixos: “a necessidade de trabalhar e, antes de tudo, a paixão pelo que fazia”. E assim continua até hoje, quando completa, em meio a dificuldades financeiras, quinze anos de “Antiquário”. Entre as razões do aperto, dona Socorro aponta a recessão que vive o País.
“Infelizmente, livro não é artigo de primeira necessidade. As pessoas passam em frente à banca e apenas olham. Seguem direto para a Frangolândia, um supermercado logo ali. A comida é mais importante”, brinca.
Antes de ir embora, uma grata surpresa. Dona Socorro enfurna-se em um compartimento da banca que eu não sabia existir. Em poucos minutos retorna com um exemplar de O Livro dos Espíritos, de Allan Kardec, escritor que lançou os princípios basilares da doutrina Espírita. “Este livro me salvou”, diz olhando-me demoradamente. Agradeço, recebendo ainda um abraço materno.