Covas e Tilápias
por henrique araújo
De bicicleta, chegam, juntamente com o cheiro-verde e o pimentão, as tilápias. Vinham embrulhadas em sacolas pardas e custaram, segundo o ajudante-de-coveiro, R$ 6 cada uma. Encostado a uma lápide, sob a qual dormem "um enforcado e um envenenado", José Ferreira dos Santos, 73 anos, protesta: antes tivesse depositado o dinheiro no banco, para render. O ajudante, àquela hora esfomeado, ofende-se e rasga a desrespeitar José Ferreira, chamando-o de “velho doido”. “A gente morre, e o dinheiro fica pra quem, velho?”, perguntava exasperado enquanto descia da bicicleta.
Adriana tem 35 anos e é natural de Fortaleza. Diariamente, pouco antes das dez horas da manhã, sai de casa, no bairro Vila Velha, e apanha o ônibus que a deixa a poucos metros de onde o marido, Francisco Cunha dos Santos, trabalha. “Venho fazer o almoço e acabo tendo de esperar até ele terminar. Quando tem muito trabalho, a gente dorme aqui mesmo”, diz. Ao lado da saleta onde Paulo César de Sousa, o administrador, atualiza o cadastro dos proprietários de lotes, Adriana e o marido aninham-se após cada jornada diária. O cômodo é estreito, e as baratas, segundo Paulo, são ali os grandes inimigos a serem batidos.
Naquela manhã, Adriana recebe os dois carás das mãos do ajudante-de-coveiro. O procedimento é conhecido de todos: primeiro, retiram-se as guelras e as vísceras da “mistura”; em seguida, após descamá-los, Adriana os deposita numa bacia com água pela metade, na qual ficam durante alguns minutos antes de receberem duas boas mãos de sal. Dali, o próximo destino é, certamente, a panela.
Enquanto a água da torneira escorre na bacia, tornando cada vez mais branca a carne do peixe, Adriana conversa. Não tem filhos, mas os espera para breve. Da profissão do marido, coveiro há 23 anos, apenas uma reclamação: não tem folgas. Cunha abre covas de sol a sol e, quando novembro está próximo, o expediente estende-se madrugada adentro, sem hora para terminar, tantos são, além dos próprios enterros, os pedidos para reparos na capela do cemitério e nas lápides. O dia-a-dia do casal é, portanto, intramuros – não os de seu domicílio, mas os do cemitério. Não tem lazer, horas de folga e os momentos de total intimidade são como agulhas encontradas no palheiro. A solução para parte dos problemas que enfrentam, segundo Adriana, seria muito simples. Um carro resolveria tudo, suspira a morena.
Distante, Francisco Cunha dos Santos, 41 anos, prepara a argamassa com que irá alisar um dos mais de mil e oitocentos jazigos que, desordenadamente, povoam o espaço do cemitério Santo Antônio, na periferia de Fortaleza. Além de sepultar, Cunha, como é que conhecido dos vivos e mortos, também é pedreiro e faz, na maior parte do dia, pequenos reparos nos túmulos pertencentes às famílias que podem pagar pelo serviço. O que ganha, para variar, não cobre as despesas, e, do carro que corta veloz os sonhos de Adriana, Cunha admite: não pode comprar sequer o pneu.
“Se a gente economizasse, Cunha, dava até pra comprar”, insiste Adriana, ao pé do fogareiro arranjado entre duas lápides que fazem as vezes de mesa. “Nem o pneu a gente pode comprar”, silencia o marido.
Cavando as memórias
Ainda sobre a lápide dos dois homens mortos de forma trágica, seu Ferreira talvez estranhe: embora tenha a barriga cortada por duas hérnias, o “caboclinho”, apelido de infância de Cunha, surpreende pelo vigor e coragem. Uma imagem bastante diferente daquela de trinta anos atrás. Vindo de Itapipoca, município do interior cearense, tangido pela seca de 1958, seu Ferreira foi trabalhar na construção civil. Conheceu a mulher pouco tempo depois e logo se casou. Do matrimônio, quatro filhos, dois dos quais calharam de ser coveiros: Cunha no Santo Antônio e o irmão, no cemitério do Mucuripe. Hoje, o pai de Cunha é aposentado, mas ainda faz “biscates” no cemitério, vigiando túmulos de famílias mais abastadas. “Não posso mais trabalhar, já passei por seis operações, todas mal-sucedidas”, brinca seu Ferreira, o “velho doido”.
Quanto ao filho, não esconde a admiração. E, para confirmar, conta uma história da época em que moravam no Pirambu: “Ele era muito magro, vivia doente. Nasceu de sete meses, gastei muito dinheiro com ele. Chegava o povo e dizia: esse aí não se cria, não”, relembra seu Ferreira, pai de Cunha e pedreiro por profissão. O que se segue, ele conta às gargalhadas. “Até que um dia eu ganhei um peba de um amigo, coveiro no São João Batista. Levei pra casa, engordei o animal. Quando fui abater, tive que sangrar; quando vi, o menino tinha enchido um copo com o sangue do bicho e bebido todo. Pensei que fosse morrer, mas começou foi a engordar”.
Segundo o pai, caboclinho aprendeu a profissão ainda criança, quando tinha dez anos. Desde então, não saiu mais do cemitério. O primeiro morto a ser sepultado pelo filho foi como o último: apenas um corpo de homem ou mulher a ser coberto de terra. Perguntado, Cunha relembra: “O primeiro está duas lápides adiante”, diz apontando com a mão esquerda o exato local. Vexame, apenas quando lhe pediram para enterrar um homem ao lado de outro que fora levado para lá havia pouco tempo. Ao abrir a lápide, o coveiro percebeu, da pior maneira possível, que o defunto ainda estava “fresco”.
“E o médico da prefeitura ainda tem coragem de dizer que esse trabalho não é insalubre. Da próxima vez que ele vier aqui, vou jogar um pedaço do morto em cima dele”, desafia Cunha.
Antes do meio-dia, macarrão escorrido, arroz cheirando na panela, o peixe fica pronto. Apesar da falta de espaço, Adriana esmera-se na cozinha, caprichando sempre. Cunha interrompe a conversa e o trabalho na lápide para provar mais uma vez do tempero da esposa. De um jazigo próximo, improvisa-se a mesa para o almoço; Cunha faz da bacia onde Adriana lavara os peixes o seu prato. Olha com prazer as tilápias estiradas na bacia. Sequer lembra daquilo que o pai tinha recomendado ao ajudante: que depositasse o dinheiro no banco, para render.
De bicicleta, chegam, juntamente com o cheiro-verde e o pimentão, as tilápias. Vinham embrulhadas em sacolas pardas e custaram, segundo o ajudante-de-coveiro, R$ 6 cada uma. Encostado a uma lápide, sob a qual dormem "um enforcado e um envenenado", José Ferreira dos Santos, 73 anos, protesta: antes tivesse depositado o dinheiro no banco, para render. O ajudante, àquela hora esfomeado, ofende-se e rasga a desrespeitar José Ferreira, chamando-o de “velho doido”. “A gente morre, e o dinheiro fica pra quem, velho?”, perguntava exasperado enquanto descia da bicicleta.
Adriana tem 35 anos e é natural de Fortaleza. Diariamente, pouco antes das dez horas da manhã, sai de casa, no bairro Vila Velha, e apanha o ônibus que a deixa a poucos metros de onde o marido, Francisco Cunha dos Santos, trabalha. “Venho fazer o almoço e acabo tendo de esperar até ele terminar. Quando tem muito trabalho, a gente dorme aqui mesmo”, diz. Ao lado da saleta onde Paulo César de Sousa, o administrador, atualiza o cadastro dos proprietários de lotes, Adriana e o marido aninham-se após cada jornada diária. O cômodo é estreito, e as baratas, segundo Paulo, são ali os grandes inimigos a serem batidos.
Naquela manhã, Adriana recebe os dois carás das mãos do ajudante-de-coveiro. O procedimento é conhecido de todos: primeiro, retiram-se as guelras e as vísceras da “mistura”; em seguida, após descamá-los, Adriana os deposita numa bacia com água pela metade, na qual ficam durante alguns minutos antes de receberem duas boas mãos de sal. Dali, o próximo destino é, certamente, a panela.
Enquanto a água da torneira escorre na bacia, tornando cada vez mais branca a carne do peixe, Adriana conversa. Não tem filhos, mas os espera para breve. Da profissão do marido, coveiro há 23 anos, apenas uma reclamação: não tem folgas. Cunha abre covas de sol a sol e, quando novembro está próximo, o expediente estende-se madrugada adentro, sem hora para terminar, tantos são, além dos próprios enterros, os pedidos para reparos na capela do cemitério e nas lápides. O dia-a-dia do casal é, portanto, intramuros – não os de seu domicílio, mas os do cemitério. Não tem lazer, horas de folga e os momentos de total intimidade são como agulhas encontradas no palheiro. A solução para parte dos problemas que enfrentam, segundo Adriana, seria muito simples. Um carro resolveria tudo, suspira a morena.
Distante, Francisco Cunha dos Santos, 41 anos, prepara a argamassa com que irá alisar um dos mais de mil e oitocentos jazigos que, desordenadamente, povoam o espaço do cemitério Santo Antônio, na periferia de Fortaleza. Além de sepultar, Cunha, como é que conhecido dos vivos e mortos, também é pedreiro e faz, na maior parte do dia, pequenos reparos nos túmulos pertencentes às famílias que podem pagar pelo serviço. O que ganha, para variar, não cobre as despesas, e, do carro que corta veloz os sonhos de Adriana, Cunha admite: não pode comprar sequer o pneu.
“Se a gente economizasse, Cunha, dava até pra comprar”, insiste Adriana, ao pé do fogareiro arranjado entre duas lápides que fazem as vezes de mesa. “Nem o pneu a gente pode comprar”, silencia o marido.
Cavando as memórias
Ainda sobre a lápide dos dois homens mortos de forma trágica, seu Ferreira talvez estranhe: embora tenha a barriga cortada por duas hérnias, o “caboclinho”, apelido de infância de Cunha, surpreende pelo vigor e coragem. Uma imagem bastante diferente daquela de trinta anos atrás. Vindo de Itapipoca, município do interior cearense, tangido pela seca de 1958, seu Ferreira foi trabalhar na construção civil. Conheceu a mulher pouco tempo depois e logo se casou. Do matrimônio, quatro filhos, dois dos quais calharam de ser coveiros: Cunha no Santo Antônio e o irmão, no cemitério do Mucuripe. Hoje, o pai de Cunha é aposentado, mas ainda faz “biscates” no cemitério, vigiando túmulos de famílias mais abastadas. “Não posso mais trabalhar, já passei por seis operações, todas mal-sucedidas”, brinca seu Ferreira, o “velho doido”.
Quanto ao filho, não esconde a admiração. E, para confirmar, conta uma história da época em que moravam no Pirambu: “Ele era muito magro, vivia doente. Nasceu de sete meses, gastei muito dinheiro com ele. Chegava o povo e dizia: esse aí não se cria, não”, relembra seu Ferreira, pai de Cunha e pedreiro por profissão. O que se segue, ele conta às gargalhadas. “Até que um dia eu ganhei um peba de um amigo, coveiro no São João Batista. Levei pra casa, engordei o animal. Quando fui abater, tive que sangrar; quando vi, o menino tinha enchido um copo com o sangue do bicho e bebido todo. Pensei que fosse morrer, mas começou foi a engordar”.
Segundo o pai, caboclinho aprendeu a profissão ainda criança, quando tinha dez anos. Desde então, não saiu mais do cemitério. O primeiro morto a ser sepultado pelo filho foi como o último: apenas um corpo de homem ou mulher a ser coberto de terra. Perguntado, Cunha relembra: “O primeiro está duas lápides adiante”, diz apontando com a mão esquerda o exato local. Vexame, apenas quando lhe pediram para enterrar um homem ao lado de outro que fora levado para lá havia pouco tempo. Ao abrir a lápide, o coveiro percebeu, da pior maneira possível, que o defunto ainda estava “fresco”.
“E o médico da prefeitura ainda tem coragem de dizer que esse trabalho não é insalubre. Da próxima vez que ele vier aqui, vou jogar um pedaço do morto em cima dele”, desafia Cunha.
Antes do meio-dia, macarrão escorrido, arroz cheirando na panela, o peixe fica pronto. Apesar da falta de espaço, Adriana esmera-se na cozinha, caprichando sempre. Cunha interrompe a conversa e o trabalho na lápide para provar mais uma vez do tempero da esposa. De um jazigo próximo, improvisa-se a mesa para o almoço; Cunha faz da bacia onde Adriana lavara os peixes o seu prato. Olha com prazer as tilápias estiradas na bacia. Sequer lembra daquilo que o pai tinha recomendado ao ajudante: que depositasse o dinheiro no banco, para render.