quinta-feira, março 23, 2006

Conversa de Jardim

texto e foto: Tiago Coutinho
Ela já estava lá, mexia em alguns detalhes seu jardim. Naquela manhã, as flores não estavam expostas sobre uma pequena mesa, apenas alguns arranjos perdidos. Os imensos ursos de pelúcia hibernavam recolhidos no lado de dentro da casa. O duende, como sempre, apontava para o alto. As letras orientais penduravam-se na parede, assim como as imagens do japonês. A dama de preto e ereta, mais tarde soube ser o símbolo de uma bruxa, dividia, hoje, as atenções com a face esbelta de uma garota do cabelo azul. Esta eu nunca tinha visto por ali.
- Oi, bom dia! A senhora é a Dona Lúcia?
- Sou. E você é o rapaz que já veio aqui duas vezes e não conseguiu falar comigo.
- Exato.
Estava descalça. Vestia um vestido na mescla entre o preto e o vermelho. Cada orelha carregava dois brincos. Não largava a carteira de cigarros. Foram cerca de seis em menos de uma hora de conversa.
- O que você quer mesmo saber?
- Queria entender a arrumação do seu jardim. Sempre passo aqui e vejo esses bonecos e flores – disse meio que gaguejando.
- Me diga uma coisa... Você pretende fazer Comunicação?
- Sou estudante de Comunicação, tou terminando.
- E como é que você quer ser jornalista, falando inseguro. Você tem uma preguiça mental, já percebi. Tem que trabalhar isso.
Começou então a confusão: seria eu ou ela o assunto da conversa?


Lúcia Regynn. O primeiro nome vem do batismo. O segundo, por determinação da numerologia. Já vive nessa encarnação e no corpo presente há 44 anos. Desde os sete, quando os portais se abrem para um ser humano, já manifestava diferenças. Nessa idade, parou de falar – hoje, parece tirar o atraso. Sentia dores de cabeça muito fortes. Quando brincava de baralho, ao invés de ver números, lia as histórias das mães de suas colegas. Ouvia vozes. Parecia normal. Mas os outros não possuíam as mesmas habilidades.
Depois da falta de voz, ela passou por três mortes clínicas, no início da adolescência. A medicina não conseguiu explicar o fenômeno. Decidiu estudar, ela mesma, a alma humana e compreender as suas complexidades.
Guiada pelas energias cósmicas e pelas forças das vibrações – ela não consegue explicar –, Lúcia arruma seu jardim diariamente de forma diferente. Deixa os objetos artesanais expostos para rua. O que haveria por traz daquilo que para mim seriam meros enfeites? Seria um bazar? Não obtive as respostas. Falou vagamente dos objetos.
Tinham uma razão de estarem ali ser. Concentram energias para o mundo externo de sua casa. Cada elemento possui simbologias. Mas as explicações não me convenciam. As flores fecham o ciclo da morte, os ursos remetem a infância, a bruxa negra à condição eremita, a boneca de azul a nostalgia, os coelhos a prosperidade.
A conversa decepcionava. Ela tinha receio de abrir o jogo mesmo. Não abriu a porta da casa. Possivelmente, teria mais relatos. Ela representava para um jornalista. Tentei conversar mais sobre sua vida. Ela desviava o rumo. Ao invés de responder, questionava-me. Eu insistia. Ela repetia as informações. Estava perdido. Minha materia sobre o jardim morria. Até que.
- Como é mesmo o seu nome?
- Tiago.
- Tiago... Me diga uma coisa.. Quando você se olha no espelho, o que você vê em você que não gosta?
- Não costumo me olhar no espelho. Apenas o uso para coisas práticas, tipo, escovar os dentes, tirar a barba.
- Por que você não gosta?
- Não sei.
- Esse seu “não sei” é revelador. Você não quer enxergar seus problemas... Vamos lá. Bote aí a data de seu nascimento nesse caderno.
- Certo. – escrevi em letras garrafais 14/11/1984.
- Vamos... Me dê aqui o caderno...

A crônica de quando o repórter se sente desarmado

De repente, ela fazia as perguntas. Perguntou sobre minha vida. Dos números do meu aniversário, fazia milhões de questionamentos. Não me sentia confortável. Ela tinha em mãos minhas armas: o caderno e a caneta. Anotava palavras sobre mim. Exatamente como costumo fazer.
Lembrava do meu julgamento ao considerar que ela escondia informações para mim. Eu tentava esconder um pouco da minha vida. Como anda sua teimosia? Você se acha covarde? Eu ia respondendo. Ela tecia idéias a respeito da minha personalidade. Com muita propriedade, afirmou besteiras, mas apresentou questões verdadeiras. Disse que sou inconstante, que a rotina me assusta, que um trabalho burocrático para mim seria uma tormenta. Ao mesmo tempo, possuía um lado que exige de mim independência financeira e autonomia familiar.
- Esse dilema te assusta. Você carrega consigo nessa encarnação uma covardia intensa. Mas há um lado aventureiro, eu diria quase doido. Mas só tem coragem de topar as próprias loucuras, quando encontra alguém... Até o momento vem dando certo, mas vai chegar um momento em que suas loucuras serão tão complexas que você se encontrará sozinho e precisará trabalhar a covardia.
Traçou minha personalidade. Fez mais perguntas. Teceu comentários... Quando ela dizia “me diga uma coisa...”, eu me temia o que vinha depois. Eu teria coragem de responder tudo? Não sei. Ela dizia que o 84 me trazia vários problemas. Viajo e penso se todos os meus amigos nascidos nesses anos são problemáticos? Não sei. O mesmo 84 exigia de mim a objetividade, a organização e conflitava com o 14. Você tem o espírito aventureiro, mas um medo muito grande.
Terminou a conversa. Ela quem me conduzia agora. Marcou o horário das fotos e disse que talvez eu não a veria com constância, apesar de quase nunca sair de casa. “Nem sempre você poderá entrar na minha casa e falar comigo. Algumas vezes, eu não deixarei”, diz num tom de mistério. De fato, a noite, quando voltei para fotografar, ela não estava lá. Por fim, disse-me para observar meu guarda-roupa e comparar com a minha mente. A organização do guarda-roupa se assemelha a das nossas idéias. Chego a minha casa, vejo meu guarda roupa: uma bagunça, como sempre. Minhas idéias também.

quarta-feira, março 22, 2006

Eu e o Bom Jardim

Entre os meus 13 e 15 anos eu morei no Bom Jardim, uma época em que minha mãe ficou desempregada e se obrigou a baixar o nosso "estilo de vida". Foi uma época muito importante pra mim, pois foi o tempo em que eu mais fiz amigos próximos da minha casa. Toda noite nos encontrávamos na esquina pra conversar, mesmo com os pedidos de minha mãe. Eles foram muito importantes pra mim, mas perdi completamente o contato desde que me mudei. Hoje decidi visitá-los.

Ramon Cavalcante

21 de março de 2006, 18 horas, quase seis anos depois...

"O Eugênio taí?" a menina ficou desconfiava, não lembrava que ele tinha uma irmã, não respondeu, gaguejou tudo que me mostrou foi sua silhueta por trás das portinholas. "Ele não chegou ainda não" veio a mãe por trás, vindo da rua, respondendo por sua filha.
- A senhora lembra de mim?
- Lembro sim
- E o Eugênio? Sabe onde ele tá?
- Não voltou do trabalho ainda- Ah, ele tá trabalhando?- Tá, no juizado móvel. Tá quase casado. Deixe o seu telefone e o endereço que agora ele tem uma motinha, é bem capaz de ir bater lá...
O Eugênio foi o meu melhor amigo daqui, meio pra baixo, meio desiludido, mas sempre foi um companheiro. Lembro das palavras dele no dia em que me mudei: "É meu chapa, só vai se for assim, isso aqui é um inferno, ninguém cresce aqui dentro não, agora bastou o cara sair, se mudar, pronto, arranja emprego, uma namorada que preste". No dia achei muito exagerado, mas voltando lá depois de tanto tempo eu vejo o quanto ele acertou. Ainda lembro dos olhos dele... os olhos de quem tava vendo tanta coisa errada que não tinha o que fazer, era se jogar pra dentro e tentar agüentar.
- O Dezim engravidou uma menina, taí o filho nasceu, a mulher passa o dia trabalhando de costureira e ele aí sentado jogando dominó, num quer nada, trabalhou uns tempos de trocador, mas essas coisas têm que ter pontualidade. – meu primo Alexandre começou a apontar com um gesto e duas frases o rumo que cada um tomou.
- Tão morando onde?
- Ali por trás do canal, rapaz ali o negócio é pesado viu... faz pena
- Como é o nome mesmo daquele bicho alí que montou um salão?
- Naim. Tá se fazendo, montou aí esse salão e daí já fez uma moto, tá terminando a casa... só que aí começou a aparecer um monte de salão por perto...
- E o Cícero cadê?- Rapaz... o Cícero tá um caso sério... desde a história lá do pai dele...
- Sim como é que foi essa história do pai dele?
- Macho um tio dele tava marcado de morte por uns marginais aí, no dia o pai dele tava andando com o tio aí já era, os caras pegaram os dois e foi sem pena... dois tiro na cara... queima de arquivo né? Fui com o Nathan nos hospitais tudim fomos achar lá no IJF, fazia uma meia hora que tinha morrido... os dois tiros foram no olho, o primeiro entrou e ficou alojado... o segundo bateu no primeiro e espatifou o cérebro por dentro...
- E quem é que sustenta a mãe e as irmãs agora? Só o Nathan?
- De vez em quando o Cícero arranja um emprego, mas aí dá uma doida, passa uma semana bebendo, falta, sai quebrando tudo dentro de casa... quem ainda discola uns serviços pra ele, por consideração ao pai, é a galera da padaria aí. Mas eles ainda tão recebendo uma aposentadoria aí que o pai dele tinha.
- E o Chiquim? Vai casar mesmo?
- Rapaz....
A história vai longe. Vou conhecer o filho do Dezim, procuro o Cícero, a mãe diz que ta pelos bares. É estranho imaginar sem ver seu rosto, ele era um dos caras mais centrados de nós... talvez tenha sido exatamente isso. Eduardo cuidando do irmão, matando frango e agora indo pros forrós, Walney desenhando, desenhando bem. Gabriel nunca descolou do vídeo-game, Jacinto desempregado, só ajudando o pai... e assim vai. Meu primo me dá uma carona de volta, quando percebe o meu interesse pelo rumo que a nossa galera tomou fala "É, por aqui as coisas não mudam muito não, vai assim mesmo, parece que parou no tempo".
Saio de lá com o peito pesado. Aquela esquina vazia, nenhum menino de 16 anos, nenhuma roda de amigos. Não consigo esquecer o olhar do Eugênio - É meu chapa, só vai se for assim, isso aqui é um inferno, ninguém cresce aqui dentro não, agora bastou o cara sair, se mudar, pronto, arranja emprego, uma namorada que preste... isso aqui parece uma doença, se vacilar e ficar de lero aqui na calçada passa um doido pra assaltar e tome bala... – quase não consegui escrever esse texto... só consegui depois de me voltar aquela imagem, aquela de todos nós na esquina, todo dia conversando, jogando conversa fora. Refletindo agora de fora eu vejo que talvez as coisas não tenham piorado lá nesses seis anos (apesar de não ter melhorado em nada), o problema é que nós crescemos, chegamos aos 23, 24, 27, quando o peso cai em cima de nós... e como esse peso é grande.

terça-feira, março 21, 2006

"Nao trocaria essa minha vida por nada"

Raquel Gonçalves, em viagem por Pernambuco

Maré seca: hora de trabalhar. Jangada Jaênia no rio aguarda sua primeira viagem. Apaixonado por onde mora e pelo seu trabalho, é no mangue que Ênio José, 29 anos, compartilha suas experiências com as pessoas, faz novas amizades e ainda trabalha tranqüilamente na melodia do mar, misturada ao grande encontro com rio. A sua harmonia com o lugar desperta admiração por sua forma de viver, tão simples mas com uma qualidade de vida invejável. É dessa forma tranqüila e sossegada que 30 por cento da vila de Maracaípe sobrevive e sustenta suas famílias nos arredores do mangue em Pernambuco.

Uma casinha localizada a 100m da praia, imersa no mangue, onde só se chega a pé, na maré baixa, ou de barco. Localizada a cinco minutos de jangada do seu local de trabalho. Uma mulher e dois filhos para alimentar, amar e sustentar. A jangada leva o nome de sua filha mais velha: Jaênia, 3 anos e 8 meses. Ênio nasceu em Ipojuca, morou em Sirinhaém, mas vive a sete anos no Pontal de Maracaípe. Todas cidades próximas ao Pontal. “Eu sou um homem muito feliz aqui com minha família”
O passeio de jangada pelo Pontal esclarece aos visitantes a respeito da vida no mangue. Os jangadeiros puderam se aperfeiçoar nos conhecimentos com um treinamento oferecido à Associação dos Jangadeiros pelos estudantes da Universidade Federal de Pernambuco. Biodiversidade: Cavalos Marinho, Pepino do mar, Chiér, Aratu, siri. Marrom, vermelho, amarelo. “O cavalo Marinho se camufla de acordo com o ambiente, no mangue ele fica marrom, sabiam?” Indefeso e delicado, os bichinhos parecem deslizar sobre as mãos de Ênio, que não nos deixa tocá-lo. “Eles são muito frágeis, é melhor não tocá-los”. Parece que a intimidade entre eles é muito maior que qualquer relação humana. Logo lá vem ele com um Pepino do Mar. “È por essa mesma cavidade que ele se alimenta e elimina seus dejetos”. Ênio nos mostra a forma de defesa do Pepino, esse estranho animal que transita entre o mar e o mangue. “É iagual ao Polvo, quando se sente ameaçado solta essa substância lilás para se esconder e fugir”.
Ao chegar perto das ilhas que se formam no meio do mangue, devido a maré seca, Ênio nos mostra várias espécies de caranguejos transitando na superfície. “Eles estão de ‘andada’, época do acasalamento”. Por isso eles ficam tão elétricos correndo e se movimentando no meio da vegetação do mangue. Chico Science utilizou-se dessa metáfora quando compôs Risoflora para falar dos instintos e do amor. O mangue é apaixonante quando se estabelece um contato profundo e íntimo com os seres que compõem esse local. Mais na frente, assistimos a dança dos Chiér, mais um tipo de caranguejo, com um pouco mais de 3cm, que se locomovem de forma rápida e escondem-se em seus pequeninos buracos na areia pouco permeável do mangue. Mesmo mangue que foi cenário de clipes alucinados do finado Chico tão apaixonado pelo mangue pernambucano.Ênio José: assim como muitos ali no Pontal, brincam a vida levando a sério, conversando com os bichos e conhecendo gente nova. Integrando cada vez mais a vida do mangue, é também responsável pela harmonia necessária entre homem e natureza.

Risoflora
Chico Science e Naçâo Zumbi

Eu sou um caranguejo e estou de andada só por sua causa,
só por você, só por você
e quando estou contigo eu quero gostar
e quando estou um pouco mais junto eu quero te amar
e aí te deixar de lado como a flor que eu tinha na mão
e a esqueci na calçada só por esquecer
apenas porque você não sabe voltar pra mim
Oh Risoflora! vou ficar de andada até te achar
prometo meu amor vou me regenerar
Oh Risoflora! não vou dar mais bobeira dentro de um caritó
Oh Risoflora, não me deixe só
Eu sou um caranguejo e quero gostar
Enquanto estou um pouco mais junto eu quero te amar
E acho que você não sabe o que é isso não
E se sabe pelo menos você pode fingir
E em vez de cair em tuas mão preferia os teus braços
E em meus braços te levarei como uma flor
Pra minha maloca na beira do rio, meu amor!
Oh Risoflora!
Vou ficar de andada até te achar
Prometo meu amor vou me regenerar
Oh Risoflora!
Não vou dar mais bobeira dentro de um caritó
Oh Risoflora, não me deixe só

quinta-feira, março 16, 2006

Seu Alves, o sapateiro.

texto e fotos: Pedro Rocha.

“Ei menino. Leva esse bilhete na casa do Zé Pereira que na volta eu te dou um pedaço de rapadura e uma mão chêa de farinha...” Honorato era menino véi, coisa de 8, 9 anos. Saiu rodando Flecherinha na cata do destinatário. “Né aqui não viu... É bem ali” E tome Honorato a andar debaixo do sol quente, o suor descendo e da pueira da piçarra subindo, indo e voltando feito besta , “ta bem pertim...”, e mais um apontava tangendo Honorato. Na porta da casa de uma senhora de idade é que o bilhete chega ao dono: “Meu filho, vá simbora pra casa que aqui tá escrito: ‘bote esse burro pra andar’.”

Honorato Alves Pereira nasceu 1930 em Tauá (349 km de Fortaleza), mas ainda nos braços da dona Maria chegou em Flecherinha, onde passou infância. Menino aperriado, com 12 já tava em Fortaleza, no ofício de engraxar sapato. Aperriado é pouco, dizem por aqui que essas pessoas têm um frivião no cú, e é bem capaz dele aos 76 anos se espalhar numa risada quando ouvir isso. Com 20 e poucos, tava no Rio de Janeiro, trabalhando no Aeroporto Santos Dumont, pra mais na frente tá carregando peso na tal da Brasília de Kubitschek, o JK. Goiânia, Anápolis, Fortaleza – só de passagem! – sobe! que o pau de arara tá saindo, Rio Grande do Norte, Pernambuco, Bahia, Minas, construção civil, ajudante de topógrafo, na roça plantando feijão, arroz, milho... Pra depois voltar fastiado, porque “quem anda só no mundo não tem valor.” Saudade da mãe. 1962.

Ali sentado na calçada, passando cola no solado, costurando bico, remendando uma sandália, pitando outra, Seu Alves, o sapateiro, conta os anos que se passaram. Toim, filho mais novo e herdeiro do ofício do pai, avisa: “rapaz, você vai dormir, acordar, e ele ainda ta falando.” Deboche de filho. De história em história, virou reportagem, dessas de televisão, jornal, rádio, até a tv a cabo, mas essa ele não assistiu, “é tv de gente rica.” Mas não foi o navio clandestino que fez ele virar reportagem. O navio que pegou pro Rio, onde escapou fedendo de uma baldeação. “Num sabe o que é? Era quando os homi iam checar de um por um quem tava clandestino no navio.” Pois nessa, ficou na terra mesmo, nem tentou subir de novo. Ouviu das margens de Recife o navio apitando rumo a capital do Brasil daqueles tempos.

Não foi o navio, nem foi o pandeiro tocado nos forrós ou as tantas mulheres em que ele “passou o pavil”. O que fez Seu Alves, o sapateiro, reportagem, foi a arrumação de sair pintando a calçada do seu ponto, ali na beirada da Av. Engenheiro Santana Junior, perto do Terminal de ônibus do Papicu. É “Feliz Natal!”, “Feliz Ano Novo”, declaração de amor: “ti-amo mãe”, poesia: “Este... domingo é meu: ti-amo”, pregação: “A porta que Deus abre ninguém fecha.”. “Seu Alves, amigo do pobre, conhecido do rico”. Mas quando a Cherokee pára do lado ele sabe, o preço vai ser maior um pouquinho.

Explica o ocorrido. Fala que quando chegou naquele ponto, há 12 anos, não tinha cliente, ai foi começando a pintar, colocar uns banquinhos, plantou esse castanhola onde estamos sob a sombra, ai foi indo... Começou a chegar cliente, mais um aqui, outro aculá. O certo é que o homem é notícia e não pára de chegar gente de pé ou no carro que encostar rapidinho pra deixar o serviço. Veio a prefeitura também, pra botar pra fora que não é coisa de se admitir a privatização de uma calçada pública!, mas um vereador que passava por lá, na intenção de recauchutar o calçado, resolveu os problemas.

“Traga o pandeiro”. Magnaldo, que tá aprendendo a transformar sapato velho em novo, corre na casa do seu Alves, ali pertinho, na Travessa Paredes, pra buscar o instrumento. Mal chega a morena com o cabresto da sandalha rebentado, ele já vai se aprumando, mete a mão no pandeiro, galanteador, malaca... Canta Morena Dengosa de Roberto da Silva.

Quando começa a cantar, ele encarrilha uma, duas, três músicas. Alegre, canta pra quem passa indiferente na avenida. Sem problemas, o que vale é ele o pandeiro... a morena... quando tá triste é isso que faz pra consolar.

De mulher e música ele entende, pelo menos é o que diz. É bruto, “minhas mulher é tipo táxi, eu pego e mando sair fora.” Mas na verdade é muito é mole., “música que esculhamba mulher eu não gosto não, dô valô a música que baba mulher”. Sem falar nos 19 anos e 10 filhos que ele passou rodando no táxi da dona Francisca Ferreira Alves, mãe do Toim. Pra ficar com a comparação dele.

O burro rodou anos, aprendeu a ler e escrever ainda no Rio, na sua passagem por lá. O bilhete? Na época, um envelope pelo correio com um tanto de C$ cruzeiros pra mãe. “A letra é uma comunicação oculta sabe. O caba pode ser calado, falar nada, mas escrevendo ele diz o que quer”. Não fale muito não seu Alves, que é capaz de um dia o senhor encontrar um rapaz bem parecido, de paletó e sapato impecável, querendo carregar o senhor pra ir dar palestra de marketing pelo mundo. Olha que o senhor já tem 76, não ta mais em tempo ficar com essas putarias.

* mais fotos

segunda-feira, março 13, 2006

Mosquito no Zine-se

Depois da primeira divulgação oficial do grupo, no último Zine-se, em 11 de março de 2006, onde distribuímos um pequeno fanzine sobre a morte do Lead. Esperamos que nossos e nossas visitantes leiam e comentem os textos aqui apresentados.

Em tempo:
Estamos ainda pensando um novo designer para este blog. Enquanto isso, vamos postando sem muitas preocupações textos sobre assuntos diversos.

Advertência:
As matérias a respeito dos terminais de ônibus estão sendo publicadas avulsas, sem uma ordem lógica. Seria interessante, no entanto, para a leitora ou o leitor, tentar acompanhar a série desde o primeiro capítulo, postado em 06 de março.

*****


Adeus, Sr. Lead...

O dia amanhece triste para o jornalismo cearense. Hoje pela manhã, a senhora Pirâmide Invertida, esposa do senhor Lead Demócrito Queiroz, aos prantos, informou á nossa redação do falecimento do homem que marcou a história do jornalismo mundial: o senhor Lead. Segundo a viúva, suas últimas palavras foram: “não estou mais me entendendo”. Ela ainda comenta que nos últimos dias suas perguntas mais feqüentes eram: “quem sou eu, onde estou indo, quem me acompanha, porque faço isso, quando tudo começou”.

Segundo o diagnóstico da Dra. Objetividade, o senhor Lead sofria, há alguns anos, distúrbios psíquicos. “Lamento o trágico fim. Mas racional-mente, foi o melhor. O senhor Lead já não dava mais conta de si”, sentencia friamente. Segundo Ramon Cavalcante, integrante do grupo Trema: “eu num tou nem vendo. Acho é pouco”. O presunto do Sr. Lead será desovado no endereço www.grupotrema.blogspot.com

TR.E.M.A. comemora o fato
MENTIRA] Morrer num morreu não, mas se depender da gente...

Deixando de mungango e falando de coisa séria, seríssima, o mosquito em suas mãos se trata da divulgação do blog do grupo TR.E.M.A. - Território de Expressão do Mundo Anônimo. O zumbido é de um grupo que se propõe a conhecer Fortaleza em seus vários antros e meandros, escrevendo um jornalismo literário que lhe conta de uma por uma, assim mesmo sem fim, suas histórias.
VISITE, COMENTE E PROPONHA IDÉIAS: http://www.grupotrema.blogspot.com/

Bossa nova ‘engaitada’

Raquel Gonçalves, em viagem a trabalho...
Quarta-feira de cinzas com direito a muito sol e sabor. Maluco Beleza não saiu nas ruas de Olinda, mas Geová tocou sua gaita no Passo Alfândega, nas ruas do Recife Antigo espalhando a boa melodia dos encantos da Bossa Nova.

Gaitista, artista, Geová. Idade? Não sei, por volta dos 60, talvez. Artista? Uma coisa é certa: os verdadeiros produtores de arte nunca se consideram artistas. A humildade e a intensidade com que essas pessoas se relacionam com o seu trabalho são as principais virtudes.

Casa do tio da namorada do meu amigo. Encontrava-me na casa de Geová. Com muito wisk na cabeça, ele estava bêbado. Voltando do Passo Alfândega, rememorava seus colegas mestres da Bossa Nova: Vinicius de Moraes e Tom Jobim. Dessa vez, trazia uma gaita nova raríssima, que havia ganhado de um amigo. Assistíamos a um DVD do Toquinho quando adentrou a sua sala. Falante, sugeriu uma fita com um documentário gravado na globo em 1994 (segundo ele, uma das poucas produções globais de qualidade) sobre a vida de seu companheiro amigo Antônio Carlos Jobim. Antes mesmo que respondêssemos, ele já tirou o DVD e introduziu a fita nostálgica, narrada por Cid Moreira ainda de cabelos grisalhos.

Muito emocionado e envolvido, tomou a cena deixando vir à tona as lembranças de um tempo que não volta mais e a angústia de ver que depois da morte, o conhecimento de Jobim é tão mal aproveitado e pouco reproduzido pelos seguidores e perpetuadores da arte. Mais de 200 versões de Garota de Ipanema. Pouco? “Ele fez muito mais que Garota de Ipanema e Águas de Março”, diz Geová enquanto coloca sua próxima dose de Wisk, agora trasbordando euforia, esparramado em seu sofá.

O cotidiano do velho é rememorar o tempo inteiro os tempos da Bossa Nova. “Eu vivi e acompanhei tudo isso de perto”. Foram três anos convivendo intensamente com Jobim no Rio de Janeiro. “Bebemos, cantamos, tocamos, conversamos juntos...” Cirrose: bar símbolo da boemia carioca acolheu e abençoou essa amizade poética, alcoólica e musical. Hoje aqui tocando na sua gaita, as lembranças musicais deixadas pelo amigo nos bares de Recife, sempre regado com muito wisk, é claro. “Nos bares sempre alguém pede alguma música dele.”

Geová: muito expansivo, não temeu ser inconveniente ou mesmo intolerante. Foi a cachaça? Tenho certeza que somente ela, não. Sua personalidade traduz muito mais que isso: intensidade. Pode até ser que alguns wisks já façam parte dessa construção pessoal, porém a atribuição de algumas características devem ser dadas a sua personalidade e não justificadas pela bebida. Em sua sala, onde encontrava-se sua sobrinha alagoana, o namorado e uma amiga cearense conversando e assistindo Toquinho ainda de ressaca em uma quarta-feira de cinzas, exteriorizou, transmitiu e contagiou a todos com sua musicalidade vital.

Vinicius de Moraes dizia assim:

“Se o cão é o melhor amigo do homem
O wisk é um cão engarrafado”

quarta-feira, março 08, 2006

CADEIRAS COM RODAS (continua)


Capítulo 3: Luiz Mendes, 30 anos. Ser humano e profissão gari. No sorriso, faltam-lhe dentes. Nas palavras, falta-lhe voz. No convívio, sobram-lhe histórias. Um dia. Uma narrativa e alguns capítulos. O terminal também o acolhe. Não existem milhares de Luiz como este. Não. Ele é único. Ele é Luiz, o Mendes. 30 anos. Marido. Pai de três filhas e dois filhos.

Tiago Coutinho


Da porta de sua casa dá até para ver a parada de ônibus. São apenas 40 metros. Mesmo próximo, Luiz precisa sair o mais cedo possível de casa. O medo de ser assaltado continua. 22h. Ele espera calado com a farda azul claro. O céu está meio cinza e esconde as estrelas. Talvez chova. Precisa logo arrumar dinheiro e ajeitar as goteiras do teto. Esses dois últimos anos São Pedro tem sido até generoso. Poucas foram as chuvas fortes. De longe, ele avista os faróis de ônibus. É o Grande Circular, esse aí? É sim. Lá vem ele. Levou sorte, chegou na hora. Vazio, ele se acomoda em um banco.

É começo de mês. Parece que amanhã o dinheiro já sai e haja contas para pagar. Algumas prestações estão atrasadas. Outras vão vencer logo. A Casa Pio, os óculos da mulher, as roupas da Riachuello. Mas se pagar tudo de uma vez, não sobra nada pro resto do mês. É foda. Mas se aperta em algo acolá, pode ser que dê certo. E se faltar dinheiro na metade do mês, faz os bico, ora mais. Cata e recicla. Tem problema não. O melhor mesmo é rezar pra num faltar nada. Já tá com um ano que as coisas melhoraram. Só de pensar na tranqüilidade de agora. O trabalho atual nem se compara com o reciclagem, sem ganho fixo. O horário da noite é mais calmo, tranqüilo. É perigoso, mas ele é homem e pelo menos a mulher conseguiu ficar de manhã...

O ônibus pára. Chegou ao terminal. Lá está a Maria de Fátima. Ele o cumprimenta. Ela logo avisa:

– Hoje, tá só nós dois. Nem o Nonato nem a Mazé vieram. Aí eu tava pensando em dividir assim. Tu fica com os pavilhões das ponta e eu limpo o resto. Certo?

– Tá certo.

Antes, um caldo. Antigamente havia até um mais gostoso, agora só tem esse de R$ 1,20, mas pelo menos vem com uns pedacinhos de pão. Dá pra forrar a noite. Hora de trabalhar. Uma vassoura, uma pá, alguns sacos pretos, um camburão, e o tempo não demora a passar. É a conta certa. Quando termina de limpar tudo, já ta na hora de ir. Óbvio que ele mesmo programa seus intervalos. Hora conversa com Carlos, por outros minutos senta numa lanchonete. Fala com a Mazé. Brinca com a doida que sempre o perturba. Nisso o tempo passa. Ele observa aquelas pessoas ao seu redor. Assim como ele, elas vão ali todos os dias.


Capítulo 4: A história de Luiz vira pauta

*****

– Oi, boa noite! Posso falar com você?
– Pode – Luiz continua a fazer seu trabalho.
– É porque eu e alguns amigos estamos fazendo umas matérias sobre o terminal de madrugada. Aí eu queria saber se você poderia me dar algumas informações.
– Eu?
– É o senhor. A propósito, como é seu nome?
– Luiz.
– Luiz de que?
– Luiz Mendes.
– Pois é seu Luiz, posso te entrevistar.
– Rapaz....
– Eu não quero atrapalhar o seu serviço. Se o senhor quiser, eu vou acompanhando seu serviço e vamos conversando, pode ser?
– Tá certo, então...
– Alguém já lhe entrevistou, Luiz?
– Não.
– Mas as pessoas vêm falar com o senhor aqui de noite?
– Vem.
– E o que elas falam com você?
– Ah, vem perguntar como é o emprego.
– É? E o que você diz?
– Eu digo qual é a firma que tem que deixar o currículo.
– Ah, as pessoas vêm te perguntar como consegue esse emprego?
– É.
– E além disso, elas falam o que com você?
– Nada não.

*****

As perguntas faltam por alguns momentos, e o silêncio pede licença. As respostas são certeiras, rápidas, objetivas e fragmentadas. As falas contrastam na dimensão e são costuradas no enredo da memória. Depois da conversa, que vai e volta sem uma lógica precisa, um caderninho de anotações difusas.

A família:
É ajuntado com Joelma, cujo sobrenome ele não sabe. Possui cinco filhos. Todos são registrados. Joyce tem oito anos e é filha de criação – o irmão da esposa a deixou aos cuidados de Joelma quando ela ainda era bebê. Hugo e Igor, os filhos da primeira mulher, não moram com ele. Luiz engravidou a primeira mulher quando tinha apenas 16 anos. Sua mãe lhe deu uma cagaço, mas já não tinha mais jeito. Hoje é órfão de pai e mãe. Quando morrera, sua mãe deixou de herança uma casa. São 40 m². Um quarto, uma sala, um banheiro e a cosinha. No quarto, apenas uma cama grande. Onde dormem ele, Joelma e as duas filhas mais nova Larissa, 3, e Júlia, 5. As meninas estão crescendo. Logo, não será mais possível dividir a cama. Aí, Luiz construirá, no terreno de sua mansão, um quarto para as meninas.

A rotina:
5h – O terminal já se encontra lotado. O expediente se encerra. Volta para casa.
6h – Chega em casa e toma o café pronto, deixado por Joelma. Esta, desde às cinco da manhã, já trabalha no terminal, onde também faz limpeza. Café bebido, ele deixa as filhas nas escolas. As duas mais velhas estudam em escola mesmo. A mais nova passa o dia na creche.
7h30 – Volta para casa. Conversa com alguém no meio do caminho. Vai dormir.
12h30 – É acordado pela esposa. O almoço já está pronto, pode ser carne ou frango, ele não tem frescura para comida. Na televisão, passa o Cidade 190. Ele gosta de assistir o programa durante a refeição. É importante ver as reportagens. Só gosta desse tipo de programa. A TV Jangadeiro é o melhor canal. De bucho cheio, volta a dormir.
20h – Janta. A mesma variedade do almoço. Brinca um pouco com as filhas. Se prepara para o trabalho.
22h – Sai de casa para o terminal. O expediente começa às 23h. Da parada de sua até o terminal, demoram-se em média 30 min.

Curiosidades:
Luiz mora no Jangurussu, zona sul de Fortaleza, numa rua chamada Paraíso. Nas proximidades de sua casa, há três cabarés, os quais ele costuma freqüentar com o irmão e um grande amigo, ambos vizinhos. Joelma às vezes se chateia e até chora por conta da situação. Mas aceita, porque é assim mesmo. Com a soma dos salários dos dois, eles tiram por mês R$ 600,00. Com esse dinheiro, eles dizem viver muito bem.

Última frase:
Luiz varre e junta, diariamente, vários sacos de lixo e os deposita no maior depósito do terminal, mas ele não sabe qual é o destino do lixo.

terça-feira, março 07, 2006

Como comprar quadrinhos em Fortaleza

As pessoas têm vários motivos pra não despertar o mínimo interesse por histórias em quadrinhos, preconceito, dinheiro apertado, desconhecimento de obras que vão além das crianças e dos adolescentes espinhentos. As que chegam a despertar algum interesse também têm que enfrentar vários obstáculos até o seu destino que é a obra que o satisfaça. Tentando reduzir tanto quanto possível essa distância resolvi deixar um pouco a preguiça de lado e visitar os estabelecimentos da cidade pra fazer esssa pequena matéria.
O problema é que em todas as lojas eu acabo comprando alguma coisa... eu quebrei meus obstáculos até demais.

Ramon Cavalcante



Encontrar uma boa história em quadrinhos não é uma tarefa muito simples. Se você vive em Fortaleza, não tem profundo conhecimento bibliográfico na área e nem pode pagar os olhos da cara por um exemplar de 100 páginas, eu chego a ter vontade de aconselhar que desista.

Os quadrinhos podem oferecer uma leitura sublime, momentos de envolvimento que em vários aspectos podem superar mídias como o cinema, teatro e a própria literatura. Difícil é achar. A produção local é ínfima, a nacional é agonizante (apenas pontualmente se encontra obras muito boas, o que se torna mais difícil quando se busca uma periodicidade) e a internacional chega aqui em pequenas fagulhas quase totalmente ofuscada pelo super-herói americano e pelos guerreiros lacônicos do mangá.
Podemos contar nos dedos de uma mão os nomes das grandes lojas de quadrinhos: Revista e Cia.; Fanzine; Ravena... mesmo se adicionarmos à lista as grandes livrarias que destinam uma seção aos quadrinhos e as bancas que disponibilizam um bom acervo na área não passaríamos de duas mãos. Sim, nas suas duas mãos você tem mais dedos do que boas opções para comprar quadrinhos.
A loja Revista e Cia. com certeza é a que tem o melhor acervo, tanto de clássicos, raridades até os lançamentos (é também aonde os quadrinhos chegam mais rápido), com mais de 350.000 exemplares guardados em 4 depósitos além da loja. Silvio Amarante, o proprietário em sociedade com a mulher, Regina Lúcia, diz que começou o seu negócio aos 6 anos quando começou a ler. Desde criança comprava já revistas antigas, hoje aos 53 anos se diz, sem dúvida, o maior colecionador de quadrinhos do Brasil. Porém são freqüentes as reclamações de mau atendimento, preços exorbitantes, o proprietário já virou lenda entre os leitores assíduos da cidade, por sua fama de empacotar e alterar o preço de qualquer quadrinho com algum grau de raridade, esconder exemplares para vender como raro e até mesmo de separar edições que são vendidas juntas para vendê-las mais caras.
A Fanzine, como o seu nome sugere, tem um caráter mais popular, não tem os mesmos problemas da Revista e Cia., mas tem outros, o acervo é bom, mas volátil, a organização é precária e a sustentabilidade é suspeitável já que recentemente o dono fechou uma das lojas, na avenida 13 de maio, ficando apenas com a do centro que tem menor visibilidade e ainda divide espaço com representação de maquinário industrial para costura no mesmo ambiente. A loja destina uma seção exclusiva para a venda de fanzines locais, algo que não acontece nas outras lojas e apenas em poucas bancas.
Ravena durante muito tempo foi uma banca com ótimo acervo em quadrinhos (ótimo acervo para bancas, nem se comparava ao das duas lojas), o negócio foi fundado em 1993, conseqüência da coleção de Josélio Lopes, colecionador de histórias de terror, e Sérgio Cavalcante, colecionador de super-heróis. Hoje eles já contam com duas bancas e uma loja recém aberta. O acervo ainda é bem pequeno e divide espaço com dvds, romances, pornografias e afins. Mas se você tiver boas referências você acha obras fantásticas por um ótimo preço.
Além das três lojas vale citar também algumas livrarias como a Lua Nova que, apesar de ter um acervo bem pequeno, disponibilizam algumas obras que nem mesmo as lojas especializadas oferecem, principalmente se o quadrinho em questão é um álbum importado de alguma editora não habituada aos quadrinhos que pontualmente lançam alguma obra (geralmente muito boa).
Mesmo nesse cenário praticamente desesperador ainda pode-se encontrar obras de qualidade invejável, aqui na nossa cidade, que não caberiam no meu quarto, talvez até na minha casa. Resta saber onde e por quanto. O porém é que mesmo obras renomadas além da mídia do quadrinho, como obras adaptadas para cinema, podem muito bem não estarem disponíveis em lugar nenhum da cidade.

Para quem quer se arriscar nesse ambiente cheio de obras medíocres, títulos desanimadores, estereotipos cansativos, cronologias infindáveis, exploração financeira e vendedores antipáticos, eu recomendo, mas desejo boa sorte.

Telefones e Endereços:
Revista e Cia – Av. Pontes Vieira Nº 1843 – Telefone: 3257-1057
Fanzine – Rua Pintes Vieira Nº 583 – Telefone: 3252-3660
Gibiteca Ravena – Rua Sólon Pinheiro Nº 279 – Telefone: 3231-8202

segunda-feira, março 06, 2006

CADEIRAS COM RODAS

Experiência-apuração: Ramon Cavalcante, Pedro Rocha e Tiago Coutinho
Fotos: Ramon Cavalcante
Texto: Pedro Rocha


E de tanto passar, descer e subir, se fez reportagem o cotidiano. O grupo TR.E.M.A. conta em uma seqüência sem começo nem fim, o que e quem passa pelos terminais de Fortaleza, enquanto a cidade transa, se embriaga, dorme... CADEIRAS COM RODAS contará em capítulos* as histórias ao leu de quem passa, trabalha ou mora por lá, ai, bem ai, debaixo das venta de quem passa apressado no pico das 18. Esperamos encontrar você num dessas viagens do corujão Grande Circular, assim, só charlando mesmo, pra gente conversar um pouco, contar histórias e tentar mudar alguma coisa. Parada Solicitada.

*Os capítulo serão publicados sem periodicidade, mas com um intervalo máximo de 15 dias.
**O blog terá outras reportagens além dessa série.


Capítulo 1: e na guarita do terminal do Papicu às 2 horas da madrugada de uma quinta-feira... Paulo tira um saquinho de pó de guaraná e despeja nos dois copos de café, um pra ele, outro para o Carlos. Bebem como remédio. No rádio da guarita, forró; o trocador do terminal passa o tempo ouvindo FM 93 e Liderança, quando não, conversando com o segurança Carlos e dando uma volta sem largar o olho da roleta. Nessas madrugadas mais lentas, como as de uma quinta-feira, ela roda de 100 a 170 vezes. Um movimento mais calmo, mas que diz tanto do urbano, quanto o pico caótico das 18 horas.

O terminal é decadente e silencioso no que tem de mais urbano essas palavras, no que tem de silêncio o olhar e o ruído. Marquise segura para pedintes, moradores da rua que se espreguiçam nos bancos talhados em concreto. Nessas horas em que os dias rebentam em fim e começo, o percurso vai de uma ponta a outra, dos restaurantes da beira do mar à periferia. Quem passa nas madrugadas pelo terminal, descendo e subindo em corujões, são os mesmo que servem caipirinha, cerveja, lagosta grelhada, e principalmente, nesta quinta-feira, caranguejos.

Carlos é um preto de 41 anos, gordo de cabelo ralo e bigode escuro que guarda desde setembro com mais dois colegas as madrugadas do Terminal do Papicu. Seu escudo amarelo e preto da Thompson Segurança contrasta com sua fala simpática, nada da frieza dos homens de preto. Sabendo do assunto, introduz o tema enquanto aponta para uma mulher que anda com os seios pro lado de fora.

— Tem muito é isso aí aqui de madrugada... tem droga, aí é complicado, porque se você pega e toma, eles endoidam, faz escândalo... pior são os homossexuais do banheiro, caba chega aqui às 19 horas e fica até 3, 4 horas só de tocaia no banheiro... quantas vezes tive que ir lá, tirar de quatro viado fazendo as coisas... se comendo...
— E ai, faz o que?
— E o pior que eles são cheios de razão, um dia desse eu tive que ir lá por causa de reclamação de usuário, tirei ele de lá e trouxe bem praqui [apontando para o meio da plataforma vazia] aí ela saiu gritando que tinham mantido ela em cárcere privado...

Os que dormem ele deixa pra acordar às 5 horas, quando o movimento aumenta, fica um tanto constrangido, e quando o terminal tá mais calmo deixa os sonhos se espicharem mais um pouquinho. Moradores do terminal, como aquele deitado no banco com uma cadeira de rodas ao lado, que na história contada por Carlos é um velho que tem casa, família e aposentadoria, mas vive no terminal com direito a visita das suas filhas. Aquela outra ali vem toda noite, só dormi sentada... Margarida Marques Fernandes de Lima, dita ela pausadamente. Pergunta de que família sou, pede referências, tenta adivinhar a linhagem. Quantos anos? “Vou fazer 57, não, fiz 57 em novembro.”, mas bem poderia ter feito 70 antes de ontem.

Capítulo 2: Dona Margarida espera sentada... dorme nos bancos cinza-industrial, sempre sentada, “durmo não, cochilo”. Uma mochila no colo, olhar cansado, voz baixa, enrolada até a testa com panos que encontrou no lixo, bem a imagem de uma retirante que fez o caminho ao contrário, nascendo em Brasília, passando pelo interior do Ceará até Fortaleza, ainda com 18 anos de idade.

Há quatro anos dorme ali no terminal, abancada a espera do filho, que nessa alturas deve tá com uns 16 anos diz ela.

— Eu ouço ele... ele diz... estuprado.. .
— Tão estuprando ele?
— Eu num já disse... Os malandro tão com meu filho, ai eu ouço, o menino.
— Que malandros?
— Os malandros tão com meu filho, seqüestraram... eu vou já já cobrar da policial porque tão matando o meu menino e não fazem nada, nada, eu vou lá cobrar dela, ela tá recebendo, tem que fazer o trabalho.



Mal dá pra ouvi-la, fala com sono, colocando o pano na frente da boca como a bocejar. Conta uma história enrolada, confusa, em tom confessional, conspirando alguma coisa. Como assim, não entendi direito? “Eu num já disse...” Começa tudo de outro ponto. Ouve o filho e volta todas as noites para espera-lo, não pode voltar para Brasília sem o menino. Junta dinheiro pra vê se compra uma televisão e o filho volta. “Fui pro interior, ai mangaram muito dele porque não tinha televisão”.

Dormiu uns tempos na casa da madrasta, mas o ouvia reclamar que estava só na rua e voltou para cá. Dorme curvada sobre a mochila, coberta pelos lençóis achados. Na mochila traz panos e roupas velhas, que também enchem uma sacola de plástico branca.

“Eu num já disse...” e lá se vai a conversa pras banda da Igreja Universal, do marido que fez trabalho pra afastar o filho dela, “foi até pra África parece...” Era obreira e evangelizadora junto com o filho quando o marido fez essa arrumação. Trabalhou também de doméstica, lavando e passando. “Eu trabalhei com um senhor que falava que a situação de Fortaleza nunca seria resolvida. Mas tem que ser resolvida”. Fala a velha, no limiar entre acordada e sonolenta, lúcida e louca. E dorme.

...E Carlos vai apontando, avisa que daqui a pouco chega uma lôra que toda noite tá aqui tentando arrumar um namorado entre motoristas e trocadores. Aquele ali é o irmãozim doido, prega quase toda madrugada no terminal, aquele... (segue no próximo capítulo)