domingo, abril 23, 2006

Lugar de repórter é na rua


Fotos e Texto: Henrique Araújo
"Eu acredito é na rapaziada
Que segue em frente e segura o rojão
Eu ponho fé é na fé da moçada
Que não foge da fera e enfrenta o leão"
Gonzaguinha
“Lugar de repórter é na rua”. Só faltou dizer: junto com a molecada, jogando bola ou contando uma piada na esquina, enquanto toma uma cerveja e aguarda, qual animal de instintos apurados, o momento certo para dar o bote.
E é assim que deveria ser a profissão; assim era feita quando, há bastante tempo, o jornalismo não capengava ou morria de inanição nas redações pouco ventiladas, mesinhas justapostas e distantes do corre-corre do dia-a-dia. Se tudo isso não passa de romantismo, aí é outra história.
Mas, pra voltar ao mote dessa nossa conversa, devo dizer que foi na rua que encontrei os meninos do Henrique Jorge. Melhor dizendo: no auditório do Centro de Cidadania Governador César Cals, que abriga, hoje, uma meninada esperta e ligeira no verbo e nas manobras de skate. Aprenderam a andar de skate juntos, há cinco anos, e até hoje um não larga o pé do outro com medo de cair. Como disse um deles, Vinícius Farias, 23 anos e skatista desde os 18.
“A gente é mais ou menos como um tripé. Uma santíssima trindade com outros propósitos. Se um cair, os outros não se sustentam”.
E olha a heresia do garoto, chamar Santíssima Trindade a um grupo de rapazes – na verdade, são apenas três – que teimam em seguir um caminho diferente, se embrenhar numa vereda que, por exemplo, outros amigos não viram ou, simplesmente, não estavam preparados para ver.
Assim a história de Vinícius, Fábio e o ausente Gleison. Não, o rapaz não é autista, não. Apenas viajara a Pacoti quando, na sexta-feira, topei com o restante do grupo casualmente e decidi entrevistá-los para um site.

“Falem de tudo um pouco”, cartão de visitas pouco comum, mas que, quando dá certo, sai de baixo. “A gente tem um projeto. O nome é Esporte Radical e Educacional”, adiantou-se Vinícius. “A gente pegou umas crianças do Autran Nunes e tamo ensinando a andar de skate. Mas não é só isso, não. Têm também palestra, vídeos educativos e campeonatos”.


Resumo da ópera: os meninos moram no Henrique Jorge, mas têm um projeto no Autran Nunes, o famigerado Alto do Bode. Ensinam uma reca de moleques entre 5 e 16 anos a andar de skate e a se respeitar. Não é, Fábio?! Fábio parece ter um pouco de preguiça em falar, mas, com as cutucadas que dou e a energia que se desprende de Vinícius, vai ganhando coragem.

“A gente também resolve as rixas da meninada do bairro”, corroborou Fábio Moura, 22 anos. “Quando tem alguém querendo brigar, a gente resolve a parada na hora, e fica tudo bem”.

Além do projeto educacional levado a cabo através do skate, uma coisa pra se ver e repetir em outras comunidades da cidade de Fortaleza, os garotos também são: promotores de evento; montadores de palco e agitadores culturais. O Vinícius também quis ser o “melhor funcionário” na empresa onde trabalhou, a Smolder, como auxiliar de serigrafia. Nunca saiu de auxiliar, segundo ele, “porque o gerente resolveu fuder com ele”. Pra ser mais preciso: o gerente não foi com a cara dele.

“E tu?”, dirigi-me a Fábio, que quase tomava um susto. O menino era mesmo muito calado, só ficava lá sentado em cima do skate escutando, como que hipnotizado, o Vinícius falar. Não nego que, em alguns instantes, me pegava escutando e escutando as palavras saídas da boca daquele marginal, educado na barra quente do cotidiano do lado pobre da cidade.

“Comecei a trabalhar pra tentar ganhar algum e também porque a família não admitia um cara que só queria andar de skate. Consegui um emprego na Vicunha Têxtil. Entrava na empresa às 14 horas e só ia largar às 23. Isso de domingo a domingo, sem folga. Tive de largar os estudos, tudo. Quando tava no trabalho, batia aquela saudade da família, dos amigos, do skate. Tinha parado de praticar, não fazia mais nada”.

Quase ficava cansado só de ouvir falar sobre a rotina do menino. Façam as contas: entrava às 14 e saía às 23 horas: 9 horas de chibata. Agora multipliquem isso por 30 dias, o equivalente a um mês. Resultado: 270 horas/mês. O cabra ainda ficou por lá três meses: 810 horas!!! Só pra contrabalançar: vocês sabem qual a carga horária de um profissional empregado na Contax, empresa do grupo Telemar-Norte/Leste e que presta serviço serviço à mesma Telemar? 432 horas. Sabem como são tidos os meninos e meninas da Contax? Como “semi-escravos”.

E dinheiro, que é bom, nada. Os caras, para participarem de uma etapa do brasileiro de skate que acontecerá no próximo final de semana em Sobral, tiveram de comer o pão que o capeta amassou e depois cuspiu em cima. Mas conseguiram, novamente, saltar sobre os obstáculos, e vão competir. Alguém duvida que essa gentinha nascida de qualquer jeito vá conseguir alguma coisa na vida?!

Eu duvido! Nossa capacidade de afundar na lama é, lamentavelmente, infinita, nunca se esgota, e meninos como Vinícius, Gleison e Fábio são os que mais sofrem com toda essa esculhambação generalizada. Não preciso nem dizer do que estou falando. Ou preciso?!

Trocamos, ao final da entrevista, telefones. Em seguida, apertamos as mãos uns dos outros, como se fôssemos velhos amigos ou futuros parceiros em algum empreendimento exageradamente rentável.

sexta-feira, abril 21, 2006

Fibra Ótica

Apenas a um quarteirão da minha casa, todos os dias eu acompanho um fluxo de centenas de pessoas entrando e saindo por catracas, de vez em quando um rosto conhecido, uma conversa apressada. Quase toda semana eu escuto uma lenda dessa empresa, desde atendente que não agüentava mais as reclamações e transferia a ligação para o telefone publico do lado de fora da empresa até funcionários que tinham pesadelos com os clientes e os supervisores. Depois de uma semana de tentar barrar as pessoas na entrada e saída de seu trabalho para entrevistá-las escrevi esse texto.

Ramon Cavalcante

E Dona Rita desce outra cerveja que é pra conversa fluir, quem fala agora é a Daniely, 24 anos (vai fazer 25), funcionária da Telemar desde os 17, quando a Contax nem existia ainda, que já foi operadora, monitora, supervisora e agora é do planejamento.
- Eu sou obrigada a dizer? – referindo-se a pergunta que eu fiz quanto ao seu salário.
- Não, claro que não.
- Então eu não vou dizer.
Perpetua, Thiago, Suelen, David, Diego, Arle, Maria, todos operadores, espalhados nos mais diversos setores da empresa, falam na hora, quatrocentos e seis reais por mês, por sei horas e quinze minutos por dia (cinco horas e quarenta e cinco – corrige discretamente a Daniely, já que tem dois intervalos de quinze minutos), seis dias por semana.
- Rapaz, você senta na sua divisória, que é o PA (ponto de atendimento) de frente pro computador e pronto – fala quase calado Thiago que trabalha no setor micro-empresarial da contax (onde atende quase exclusivamente clientes de pontos telefônicos comerciais).
- Ah, no teu setor é tranqüilo né?
É sim, quando você trata com o povo de empresa...
- Mas na retenção é quente o negócio... – Maiara Raquel, que trabalhou quase dois anos no setor e há seis meses está desempregada... mas nem por isso deixou de vir na quinta (véspera de feriado) beber uma cervejinha com os amigos.
- Tem as histórias das metas né?
- É, cada setor tem várias baterias (grupos de trabalho), que disputam entre si quem atinge as maiores metas... só que na retenção a meta é não deixar o cliente cancelar a linha, quando ele quer cancelar...
- E se não alcançar a meta?
- Assim, a maioria das vezes ninguém nem diz nada... mas a gente sente a pressão.
Os setores são o “103” ou “Atendimento Geral” (a porta de entrada da Telemar, lá encaminha para todos os setores), “contas” (verificam as contas dos clientes, atendem a reclamações de contas erradas), “micro-empresarial” (que o Thiago já explicou), “técnica” ou “CNS” (centro nacional de soluções – resolvem os problemas técnicos), “retenção” (o pesadelo dos operadores), “cobrança” ou “RC” (recuperação de crédito).
Com mais de 5.000 funcionários espalhados em cinco andares (além do térreo) em cinco anos de existência a Contax (empresa terceirizada que é da Telemar) é referência na possibilidade do primeiro emprego, assim como é referência num trabalho desgastante e degenerativo m que as pessoas pedem pra sair.
- Se eu pudesse receber meu dinheiro ficando em casa eu achava melhor – Daniely me respondendo se gosta do emprego – mas eu não tenho muito do que reclamar não.
- E essas histórias dos problemas de saúde?
- Bom, eu, em oito anos, nunca tive uma tendinite, nunca tive problema de garganta. O trabalho é desgastante, você digita direto, fala direto, mas a empresa lhe instrui, “mude o fone de ouvido de hora em hora”, “postura correta”, mas aí se você não faz a culpa é da empresa?
- A cada duas horas de trabalho na frente do computador a pessoa tem que descansar aproximadamente vinte minutos. A cada dez minutos olhando pra tela do computador a pessoa tem que parar ao menos um minuto, olhar para outro lado (a divisória?) e piscar bastante os olhos – Doutor Edson Muniz, clinico geral e ortopedista – e isso nós estamos falando numa perspectiva de produção mesmo, que a pessoa tem que render o máximo sem causar seqüelas ao seu corpo.
- Mas tu vai ter que convir comigo Daniely que o funcionário é visto numa perspectiva de produto.
- Sim, mas qual é o produto da Contax? O produto é a pessoa, é isso que nós vendemos, a gente tem que investir nele. Existe uma coisa chamada capitalismo.
E a Dona Rita desce mais uma, agora também um queijinho no espeto pra segurar mais um pouco. Dona Rita essa que há três anos tira o sustento, junto com o irmão Mário, num carrinho de churrasco com algumas caixas de isopor cheias de cerveja gelada. Abre todos os dias, mas quinta e sexta é melhor, dá pra tirar até R$ 1.500 numa noite. E foi por causa dela (obrigado Dona Rita) que eu consegui entrevistar mais pessoas, porque o povo tá sempre entrando e saindo atrasado, de vez em quando um rosto conhecido.
- Eu nem me assusto quando, de férias, atendo meu celular dizendo “Telemar bom dia em que posso ajudá-lo” – Arle do 103.

quinta-feira, abril 13, 2006

Que merda!

Ei, como é que a gente pode debater jornalismo, comunicação e os temas da cidade que abordamos nesse espaço, sem uma intervenção crítica da galera, você, que tá lendo? Esse post é apenas para levantar a sua saia e ver o que tem por baixo disso. Comentem, critiquem, vamos debater as representações e narrativas que estão sendo postas aqui. Elogios são sempre bem vindo - como estão nos incentivando! -, mas a crítica e o debate vão além. Isso aqui se pretende a ser muito mais que textos bonitinhos. Os autores, mais que egos que inflam a cada novo comentário elogioso. Pode arrochar.

CADEIRAS COM RODAS (cap. 4)

Capítulo 4: ...Carlos vai apontando, avisa que daqui a pouco chega uma lôra que toda noite tá aqui tentando arrumar um namorado entre motoristas e trocadores... E lá está. Branca, quase albina, o nariz avermelhado, os olhos meios repuxado por cima de olheiras. Rodando pelos terminais, conversando com fiscais, motoristas, trocadores... O sorriso rebenta sem mais nem menos, deixa ela com cara de coelha, olhar faceiro de cúmplice de alguma traquinagem. A voz fina, espontânea, de contar histórias como viu e sentiu. As unhas com um esmalte marrom ruído e o cabelo mestiço, feito menino novo que ainda está escurecendo os pelos, preso por uma liga verde, fazendo um cocozinho caprichoso.

Mônica Monteiro Cavalcanti, deixa eu escrever, é que Cavalcanti no final é muito complicado. Cavalcanti com i é de algum pais de fora. Eu perguntei pro meu pai, ai ele começava a me dizer que era de Itália. Pelo entender dele, a história da família do meu avô tem um descendente que é da Itália, um negócio de Itália assim sabe. Ai ele dizia: ‘coisa chique importada dos Estados Uunidos.’” Na Itália?, não, não, ali mesmo no Conjunto Ceará, segunda etapa, um dos maiores conjuntos habitacionais da América Latina. Na época, 1979, uma casa da Cohab.

Roda pelos terminais há 10 anos, desde quando o pai, sua companhia, saiu de casa. Conhece de tudo, mas roda mais pelos terminais da Lagoa, Conjunto Ceará e Papicu, onde a gente tá agora sentado nesse banco de concreto conversando, pra se contar de forma mais certa, deixando ela falar.

Acorda 9 e meia. Toma café, abre a televisão, já deixa no canal de 17 pra escutar um musiquinha, gosta mais de escutar spispi. Britney Spi? É. Ai aperreia a mãe pelo café. 4 bolachinhas com um suco. Ou de maracujá ou de goiaba. Quando não tem suco é chá de capim santo ou sidreira. Às vezes aparece bolo em dia de festa. “Não me convite pra festa não que eu levo só a barriga”. No final da tarde parte, faz escala no terminal do Conjunto, joga conversa fora com os amigos. É nesse terminal que tem os amigos mais antigos. Depois parte para o do Papicu, onde tem uns gatinhos só o filé. O supervisor é bem bonitinho... Lá no conjunto só tem peba.


― Tu é muito vaidosa Mônica?
― Mais ou menos, isso quando quero arrumar um gatinho.
Pois me diz ai. As histórias que eu sei é que você anda atrás de um namorado aqui.
É mermo?! Quem que escarrou?
Eu ouvi assim...
Ah! O irmão. Eu mato o irmão.
― Quem é o irmão?
― É o vandame ali... ô... o Paulo.
― E o Luiz ai?
― Aquele ali, eu fui ajeitar uma loirinha, queixei a menina e disse que ele trabalhava de fiscal. Cheguei pra ele, ai ele disse “mulher não era pra ter dito que eu trabalhava de fiscal não, era pra dizer a verdade que eu era zelador”.
― Porque que ele queria que tu falasse que era zelador mesmo?
― Porque ela já sabia que ele era zelador, mas ela não sabia que ele tava afim dela. Ai eu fui dá os toque...
― Ai ela se tocou e saio fora...
Foi.


Sabe do nome do motorista da linha Conjunto Ceará/Papicu, até a lista dos números das empresas de ônibus. De empresa por empresa. Já foi de sentar do lado do motorista novo na linha e ir ensinando o rumo que tem que ser decorado. Aprendeu só olhando. Pegando aos poucos. Porque tem aquele ditado “É na experiência da vida que o homem se evolui”.

De rodar, conversar aqui e ali, não paga passagem, mas de vez em quando pede os dois conto a mãe pra não dar cabimento aos usuários. “As vezes eu peço, pra não ficar entrando pela frente, pra não dá cabimento ao passageiros, ai eu falo mãe me dá dois reais pra pagar a passagem, ai ela pensa que eu to raparigando , ai ela me bota pra baixo, mas eu não tô raparigando, ela me bota mais pra baixo ainda, ai eu fico mais pior ainda. Uma dia eu disse assim, ‘mãe vai vê se eu tô raparigando, vai olhar o que eu tô fazendo no terminal, chega qualquer dia desses lá no terminal e me olhe, se eu tiver raparigando você vai deixar de ser minha mãe.

“Às vezes minhas amigas me arranjam dois reais ai eu chego lá em casa ela pensa que eu to roubando. Ela pensa que eu to roubando, é assim, a minha vida é assim lá em casa. Eu só me sinto bem por aqui mesmo, só me sinto bem entre meus amigos”.Gaguejando, olhos vermelho, cena de close nos olhos, mas o mais fiel seria na boca salivando com os fios de saliva ligando os dentes, enquanto fala.

Educação rígida a da dona Francisca. O avô batia na avó mesmo grávida de 8 meses, dava pesada na barriga. A mãe de dona xica abortou 5 filhos, ficou com deficiência, teve que tirar o ultero, “ficou como um vegetal, tudo morto dentro”, fala Mônica em um tom poético e ingênuo que parece não dá conta da imagem brutal.

Não é difícil entender porque nos terminais. Com uma passagem de R$1,60 você roda por várias partes de Fortaleza, diversifica as companhias e depois de um tempo parte pra outro, e outro, até chegar em casa cansada, dormir e acordar com mais um dia de passeio por Fortaleza.

Não tão fácil. Mônica é de uma simplicidade que suas palavras parecem bem um menino correndo atrás de uma bola quando faço as perguntas. Fala, chora, a voz vai afinando, se misturando com alguma outra coisa que lhe pára no meio da garganta dela. Da minha. (segue no próximo capítulo)


Capítulo 1 e 2
Capítulo 3

terça-feira, abril 11, 2006

Romeiros do inverso

texto: tiago coutinho

- Menina, cadê a Lúcia, hein? Ela ainda não chegou? – gritou uma senhora sentando no banco da praça.

- Tou aqui deitada, mulher! Não agüentava mais meus pés doendo... Ainda bem que não tá chovendo...

- Deus não é vingativo! Já pensou, passar esse sufoco todo e ainda tomar banho de chuva?

***

Canindé, 1996, uma hora perdida em um dia desconhecido: Alguns amigos de Célio, ao voltarem de Fortaleza, o convencem de que o negócio na capital valia a pena. Ele toma uma decisão. Iria testar no próximo mês.

Fortaleza, 12 de março de 2006. 23h45: Marluce espera sentada, com os braços e as pernas cruzadas, no banco da praça, que o pau de arara chegue com suas mercadorias. Olha constantemente para o lado de onde deve chegar o carro. Ela sabe que não dormirá um único minuto da noite.

Canindé, em um dia da semana qualquer, ao meio-dia: Naira, 15 anos, se prepara para ir à escola. Desde as oito da manhã, estava na loja da sua mãe, situada na Galeria Frei Lucas Doll, uma homenagem feita ao Frei que mais demorou em Canindé. A cena se repete diariamente, com exceção dos sábado, quando ela trabalha até às 17 horas.

Fortaleza, 12 de março de 2006, 23h15: Movido pela curiosidade de saber por que as pessoas que vendem artigos religiosos todos os dias 13, em frente à Igreja de Fátima, passam a noite na praça, espero meu amigo Pedro chegar com a máquina fotográfica para começar a nossa pauta.

Canindé, 12 de abril de 2006: Marluce fica na cidade. Os demais amigos arrumam as peças para levarem à Fortaleza. Neste mês, ela não vai. No mês de abril, não há a missa de lavar os pés, o movimento é menor, por isso, não vale a pena.

***
Enquanto parte da classe média de Fortaleza se encontrava acolhida em seus lares, preocupada em saber quem seria o indicado para o paredão pela líder Mara no 6º Big Brother Brasil, Célio parecia ignorar o programa que há pouco passou na televisão da lanchonete ao lado. Ele arrumava, calado, sua barraquinha de miudezas e santinhos, em frente à Igreja de Fátima. A sua expectativa era outra: quanto venderia no dia seguinte?


Apesar de ter passado três horas em um pau de arara, ele ainda encontrava disposição para arrumar com cuidado seus objetos e ainda responder às perguntas de um carinha que, talvez, ele nem lembre o nome. Possui 42 anos e vive, há mais de 20, da fé no comércio. Assim como quase todos os amigos próximos, ele se desloca uma vez por mês de Canindé para Fortaleza com suas caixas de mercadoria. Na companhia, a esposa Isabel.


Ele já está quase terminando de arrumar. Depois de pronta, Célio cobre toda a barraca com saco plástico preto. Mas não é por medo de roubo. Só há gente conhecida, pode confiar. Mas pode chover e, pra dormir na praça, é melhor ficar no escuro com o colchão dentro da barraca.


O companheiro ali do lado, cujo sono não se perturba com o barulho dos carros, armou sua rede entre os dois ferros de base de sua barraca. A fadiga serena antecipa o intenso dia de trabalho. As missas, na Igreja de Fátima, começam cedo, a primeira, segundo Célio, já se inicia às 5h30. Muita gente chegando para rezar. Por isso, ele arruma logo suas peças, para tentar ainda tirar um cochilo.


A companheira Marluce, de umas quatro barracas ao lado, não teve a mesma sorte. Ela veio antes num carro fretado. O pau de arara, onde viria seus santos, deu prego no meio do caminho. Atrasou tudo. Mas ela não fora a única, outros se encontravam na mesma situação. Não podia nem dormir, tinha de esperar a mercadoria chegar.


Conversava com Naira. Mas o pensamento era recorrente. Essas coisas que não chegam. A preocupação é justa. Sendo as peças de Marluce santos de gesso, quando mudasse de carro, poderiam se quebrar. Marluce faz, ela mesma, suas mercadorias. Isso lhe dar uma liberdade maior, para faltar alguns dias de trabalho quando se encontra cansada.


As peças são baratas. O preço mais caro, uma estátua de 60 cm, custa aproximadamente R$ 8,00. Mesmo assim, Marluce, nos dias 13, apura cerca de quinhentos reais. Vale a pena o investimento. A passagem de pau de arara com a mercadoria fica em média de R$ 30. Com alimentação, ela gasta próximo de R$ 15,00. Sempre tem umas quentinhas ali por perto. O pior mesmo é passar o dia em pé, vendendo suas peças. Ao longo do dia, Marluce não assiste a nenhuma missa, porque não dá tempo tomar banho, nem traz de casa uma roupa decente. Ela, assim como todos, só volta para Canindé, depois da última missa. Às 20 horas.


Por causa disso, Naira nunca vai à escola nos dias 14 de cada mês. Apesar de estudar pela tarde, chega em casa, em Canindé, próximo das duas ou três da madrugada, precisa descansar. Ela faz o segundo ano do ensino médio. Gosta de Química e namora com José, um garçom de pizzaria em Canindé.


Mas Naira já está com o dia ganho. A barraca de sua mãe, Lúcia, está toda montada com santos comprados dos artesãos de Canindé e com miudezas fornecidas por catálogos de revendedores paulistas. Ela, deitada em seu colchão, tenta dormir, mas faz companhia à Marluce, que deve ainda manter essa preocupação por algumas horas.


Quando essas coisas vão chegar, meu São Francisco? Mas pelo menos a chuva não veio. Teve alguns respingos, é verdade. Mas Deus não foi muito vingativo com eles naquela noite.

sexta-feira, abril 07, 2006

Parafernália


Texto: Raquel Gonçalves
Fotos: Arquivo da Parafernália
- Eu sempre quis ter um site ligado a arte, principalmente a poesia. Aí, eu criei o Putz Piz Parafernália em 1996 e fui procurar pessoas que quisessem compartilhar da minha idéia...
Mardônio França

- Conheci o Gleizer e ele me levou até o laboratório de computação do Itaperi pra me apresentar um cara da computação que sacava de poesia & artimanhas em geral e estava formando um grupo junto com os pintores. O cara era o Mardônio, falou sem parar durante uma hora misturando física, matemática, Oswald de Andrade, movimento estudantil, puteiros, bebidas e uma porrada de coisas mais. Era um coquetel molotov explodindo. Fiquei tonto mas sabia que já estava dentro.
Nuno Gonçalves

Pessoas juntas, criatividade fervilhando, pessoas pensantes, os nervos inquietos, pessoas atuantes. Não há definição exata para o que foi a Parafernália, mas durante 4 anos ela existiu e ocupou muitos espaços em Fortaleza. “Nunca conseguimos uma auto-definição coerente, creio que não queríamos isso”, diz Nuno.

No início, um site de poesias. Com o decorrer do tempo, a história foi crescendo e tomando várias formas e linguagens. Primeiramente, a Parafernália não se propunha como um grupo. Eram apenas jovens que já faziam a sua arte e de repente se encontraram juntos, discutindo conceitos poéticos e possibilidades de atividade conjunta. As artes plásticas, as pinturas também ocuparam seu espaço na nova formação que surgia. Como aconteceria essa integração dos membros se havia tanta disparidade entre os integrantes e suas próprias produções? O site agora era apenas mais uma das formas de expressão do já então Parafernália. Gleizer e Mardônio brincavam com as possibilidades computacionais, elaborando poesias animadas e dando vida digital aos desenhos do papel. Pinturas, recitais, zines, permormances também cumpunham o arsenal parafernaliano.

As poesias de Nuno e Mardônio se assemelhavam num detalhe: ambas tinham uma identidade performática muito forte. Denis Diderot, um integrante no mínimo estranho. Apaixonado por Nova Yorque, também gostava de escrever poesias finas. Poesias mansas e tênues foram surgindo e se contrapondo com o lado ácido e rebelde também de outros integrantes.

“A contradição era uma das melhores coisas que a gente pôde viver”, recorda nostalgicamente Mardônio. O grupo se configurava entre grandes contradições. Sem nenhuma sistemática ou metodologia de reunião, se encontravam sempre em bares para discutir conceitos, experimentos, recriar significações, brigarem e beberem muito. A idéia do primeiro zine veio com a idéia de se fazer a primeira festa da Parafernália. Dia 17 de julho de 1997, no Cidadão do Mundo (atual comitê da Luiziane, na Av. da Universidade). “Era uma casa antiga dupex, bem tradicional do Benfica que funcionava como bar. Tinha só umas mesas e uma televisão lá, tocando The Doors, Pink Floyd”, explica Ayla. Foi nesse cenário que aconteceu a primeira festa e que circulou o primeiro zine. Com um público punk-rock, bem undergound, foi nessa primeira festa quando também aconteceram as primeiras performances, as exposições dos quadros pintados, recitais de poesia e a distribuição do zine. Tudo ao mesmo tempo. “Eu chorei quando, ao fim da festa, vi muitos zines espalhados pelo chão”, relembra Ayla.

A partir daí, a Parafernália desbravejou por Fortaleza. Produção, discussão, festas, performances por toda parte. Haviam grandes conflitos internos na Parafernália, não só nos embates conceituais, mas também nas vivencias, nas afinidades de cada um sobre o palco. Nuno e Mardônio, por exemplo. Um, a intensidade em pessoa, vida, ação, emoção, sentimento. Outro, a teorização da vida, das palavras, dos conceitos. O mais fascinante era que eles conseguiam juntar as duas coisas numa só. Levavam ao público nas apresentações um pouco do que foi discutido, conceituado e teorizado nas mesas de bar com muito álcool e muita droga. As divergências internas da mesa de bar era a incoerência real nas apresentações sobre o palco, na rua, onde fosse.

Um conceito que foi utilizado nos trabalhos da Parafernália foi o da antropofagia cibernética. Baseava-se na reutilização de meios e equipamentos para uma reconstrução de uma arte transformadora como um espaço de expressão da arte subversiva e da própria literatura. Conceito pescado na literatura do tempo de Oswald Andrade. Era o que estava se fazendo com as máquinas, os chips, com a tecnologia computacional. A Poesia Parametrizada, que era no mínimo questionável, também foi incorporada não só nos textos, mas nas artes performáticas. Essa tal de poesia parametrizada era uma tentativa de, a partir de um parêntese aberto no meio da palavra se gerar outra possibilidade de leitura de reconstrução da nova palavra e de uma outra interpretação poética. Para Mardônio, nas pinturas ela era utilizada de forma a gerar também duas interpretações da obra de acordo com o ângulo e da distância a ser observado. Já para Ayla, que produzia as pinturas, não atribuía esse conceito a suas produções plásticas. “Eles tinham muita influência do concretismo, eu não gostava muito”, afirma Ayla se referindo à Mardonio. Enfim... inúmeras contradições e concretizações das longas discussões sobre conceitos e mais conceitos.
O espírito libertino da Parafernália extravasava pelos poros dos integrantes. Era como se a Parafernália fosse uma grande miscelânea de vários gritos engasgados que resolveram ruir, todos ao mesmo tempo e no tempo certo. Não existia lugar nem hora quando estavam reunidos a fim de fazer qualquer coisa.

Por volta de 1998, já tendo sido matéria do jornal ‘O Povo’ e tendo sido convidado para se apresentar no Dragão do Mar, sendo reconhecido nos mais diversos espaços culturais de Fortaleza, a Parafernália chegou no ápice do seu sucesso e reconhecimento. “Estávamos ‘pop’ em Fortaleza”, afirma Mardônio. No mesmo ano, foram convidados para se apresentarem no palco alternativo do show da Cássia Eller e Arnaldo Antunes, no Itacaranha Park Hotel. Segundo Mardônio, nenhum dos membros necessitava dos cachês que lhes eram concedidos pelas apresentações. Por isso, eles tinham total liberdade para quebrar regras e protocolos dos contratos de apresentações. E assim faziam com muito prazer: liberdade total, improvisação, pouco ensaio. Sobreviviam sobre o palco.

“Lembro de uma apresentação no Dragão do Mar que foi incrível. O Alisson sendo tatuado sobre o palco, as costas do Nuno sendo pintada na hora pelas meninas (Júlia Manta e Ayla Andrade), eu na performance com poesias intercalando com algumas recitadas pelo Nuno, imóvel”, relembra Mardônio se referindo às apresentações constantes no projeto Roda de Poesia, do Dragão do Mar. “Foi mais ou menos a partir daí que a Parafernália foi coagida a se denominar como grupo”, diz Ayla sobre os constantes convites que começava a surgir pela cidade.

Quando eram convidados para se apresentarem em algum lugar, o principal critério que a Parafernália analisava era se tinha um lugar bacana para todos beberem e, depois da apresentação, curtirem a festa. Eram totalmente desprendidos de valores materiais. Tudo era muito fugaz e autônomo. Tudo meio que se atropelava e de repente, passava. Era vivido o intenso momento da hora e... já foi. Do mesmo jeito rápido e fácil que as coisas aconteciam, elas também se desfaziam e já estava se pensando no novo, na construção do diferente ou não. Horas a Parafernália estava morta, oras ela ressurgia das cinzas com todo gás. E essas inconstâncias acompanharam o grupo até o fim.

Parafernália na mídia, mas o ânimo não era mais o mesmo. A fama não era o objetivo do grupo. E o tesão foi morrendo. “Lembro de uma outra apresentação no Dragão do Mar, tão decadente que, ao final, nos apresentamos dizendo nossos nomes” lembra Mardônio. Uma marca forte da energia pulsante do grupo era nunca dizer os nomes dos integrantes que estavam ali, se apresentando. Era sempre unicamente Parafernália, mas o tempo foi passando e cada qual seguindo seu caminho. “A Parafernália tinha que acabar mesmo, ela já estava muito estigmatizada, ela ia acabar virando os ‘Rollins Stones’(risos), e não era isso que a gente queria” diz Mardônio. “A história foi se desfazendo, a gente não conseguia saber mais o que a Parafernália queria, não conseguia dar uma resposta pra gente mesmo, muito menos pros outros, fomos perdendo nossa identidade. A gente também cansou da própria fórmula que criamos”, diz Ayla se referindo a própria dinâmica de apresentação, sempre com muitos gritos, sem ensaios e chocando o público.

Em 2000, foi celebrado vários enterros da Parafernália, onde bares e mais bares foram cenários da seguinte frase: “Hoje está oficializado a morte da Parafernália.”
Completam-se 10 anos de seu surgimento. Foram 4 anos de Parafernália. Um grupo “inconstante e porra-louca”, como diz Ayla, mas com um espírito mútuo de troca de experiência, conhecimento, discussão, produção e realização.

- No fundo, a Parafernália funcionou como uma terapia para todos nós, foi um tratamento - Mardônio França.
- Qual a importância da existência do grupo para você, Júlia? - Jogar pedra no fundo do rio, turvar a água, movimentar os quadris dos caquéticos, ruborizar até a cachoeira das eras.

segunda-feira, abril 03, 2006

Homem Sol

texto: Eduardo Martins



Evanilson é, ou só parecia, uma pessoa tímida, recatada. Um típico trabalhador. Concentrado no serviço. Talvez um pouco enrijecido pela indiferença de muitos clientes com os quais, ao longo de sua experiência, Evanilson foi obrigado a conviver.

Em um domingo ensolarado na Lagoa do Cauípe, Evanilson parecia ser o único a vender pitombas à beira. Desviando das barracas, ora por dentro da terra fofa e pesada, ora molhando o mocotó na margem, Evanilson enxugava a testa suada pondo a franja meio comprida para o lado. Queria tomar banho na lagoa, mas não podia.
Evanilson morava “na Caucaia” e provavelmente passava os finais de semana no Cauípe. A pele muito bronzeada e os cabelos queimados do sol denunciavam uma rotina, e emolduravam o sorriso pouco maroto de Evanilson, talvez já castigado demais pelo trabalho. Confessava, desconfiado, torcer pelo fluminense, e sabe Deus o motivo da desconfiança, já que ostentava a camisa tricolor do clube, acompanhada de um calção encardido e de uma chinela de dedo tipo “havaianas”.

Evanilson sempre preferiu animais à números. Os cálculos para a venda eram meio confusos para ele, embora o preço fosse sempre um valor “redondo”.

Naquela vida difícil da areia fofa, entre o calor febril do meio dia e a refrescante lagoa cheia de banhistas, na qual Evanilson queria entrar e não podia, ele ainda suportava o barulho ensurdecedor dos sons de carros, estacionados quase em cima da beira. Andava entre as caixas de som, e de cada uma levava um cascudo, às batidas que zuniam no ouvido.

Evanilson até aquele momento não havia vendido um cacho de pitombas se quer. Pitombas são baratas, um real o cacho.


Era experiente naquela vida, percebia-se por sua postura naquele lugar. Além disso, ele trazia o sol consigo, identidade forte de quem vende pitombas na praia, e que também revela experiência. Experiente, mas àquela idade Evanilson não sabia ler.

Vendeu dois cachos de pitombas. Precisava continuar. Disse que cansava do trabalho. E partiu.

Evanilson, depois da conversa, ainda passou algumas vezes por mim. Vendeu mais pitombas. A última vez que o vi faltava só um cacho. Não o vi depois e não o achei banhando-se na lagoa. Evanilson é um homem forte e Deus abençoa os homens fortes.

Ano que vem Evanilson vai ser mais forte, vai aprender a ler. Vai ficar mais velho também, vai fazer sete. E tomara que a mãe dele deixe tomar banho na lagoa, mesmo se não tiver vendido tudo, só pelo motivo de que Evanilson traz o sol consigo ou que, muitas vezes, o sol daqui é de rachar a cabeça dos Evanilsons.