segunda-feira, outubro 23, 2006

Sob o teto de benjamins


Texto: Henrique Araújo

O homem, ou mulher, cochilava debaixo dos benjamins pendurado ao pescoço de Raquel, a escritora, enquanto, num banco próximo, seu Galdino, elegantemente vestido para um início de manhã, mergulhado nas próprias lembranças, respondia as perguntas de um estudante. Noutra quina da praça, o Valdeci, senhor apequenado e tímido que cuida da General Tibúrcio juntamente com outros três idosos participantes do projeto Encanto das Praças – e que, por isso, recebe a bagatela de R$ 150 da prefeitura de Fortaleza –, acendia um cigarro na brasa do outro. A poucos metros, o amigo falante de seu Valdeci dava informações a um grupo de estudantes de jornalismo. Ele, no seu cantinho, apenas observava.

“Seu Valdeci, o que foi aquele prédio torto ali?”, perguntava apontando a construção inclinada para a esquerda e cuja pintura descascava em muitos pontos. “Pergunte ao outro, o Francisco, que ele sabe. Eu não sei”.

“Ali, meu filho, funcionou o comitê do PMDB, eu trabalhei por lá durante muito tempo, hoje só tem um vigia que vive colocando a molecada pra correr do prédio”, explicava um Francisco solícito.

Enquanto os vendedores vendiam, os engraxates engraxavam, os devotos rezavam e os vagabundos vagabundeavam, o estudante ouvia atento seu Galdino. Haviam chegado à praça quase juntos, ele, atrasado para a aula de campo; Francisco Galdino Neto, na hora exata. À distância, o professor-orientador apenas farejava – esperava que, posteriormente, um dos alunos escrevesse sobre o episódio da estátua. Ou sobre qualquer outra coisa, desde que escrevesse. Afinal, diria dali a dois dias, já em sala de aula, não é possível que alguém chegue numa praça e, depois de três horas sentado num banco, simplesmente afirme não haver histórias para relatar. Ali, por exemplo, estava uma: a da estátua de Raquel de Queiroz confortando um provável coração em frangalhos.

Da Praça General Tibúrcio ou Dos Leões, sobressai-se a imagem pré-estabelecida: prostituição e insegurança. Naquela terça ou quarta-feira, porém, não se viam as meninas – ou, pelo menos, nenhuma que correspondesse ao perfil que se espera de uma “mulher da vida” – e, das quatro esquinas da praça, pelo menos uma estava ostensivamente ocupada por viaturas da Guarda Municipal de Fortaleza.

“Hoje tem até um policiamento por aqui. Acho que já é o projeto do governador eleito, o tal da ronda do quarteirão. Deve ser isso”, estranha seu Galdino. E, num movimento de memória cuja razão espanta, relembra também o nome dos guardas que por ali se abancavam nos idos de 1940. “Eram dois, um chamado Cordeiro Neto e outros dois, Cosme e Damião. Aliás, tinha só dois não. Eram uns quatro”.

Era, sem sombra de dúvida, terça-feira. O mês, outubro. Fazia sol, o tempo abafado nesta época do ano. Em seguida, uma chuvinha fina. Na praça, a passarinhada dava o seu show particular. Em bandos, papagaios, ou louros, azucrinavam o juízo de uns; para outros, amainavam o ruído do trânsito ainda lerdo na avenida Sena Madureira, umas das quatro que demarcam um dos quadriláteros mais prenhes de memórias, individuais e coletivas, no Centro. Em verdade, se aquele miolo de cidade fosse uma penteadeira, certamente a Praça dos Leões ocuparia, ao lado da Praça do Ferreira, lugar de destaque.

A propósito de uma pergunta que lhe fizera o menino-repórter, seu Galdino, sem pressa, enfia a mão no bolso traseiro da calça rigorosamente engomada. Entre os documentos, salta à mão o registro da habilitação, exibido com orgulho. “Preciso de lente pra nada, sei dirigir muito bem. O médico é que não recomenda”, confessa.


Antes disso, já havia dito da peleja que fora a vida, as idas e vindas entre Cascavel e Fortaleza, o casamento, à beira de completar sessenta anos, com Maria Margarida M. Galdino e o tal do pega-pinto do Mundico, a dois quarteirões de onde estavam agora.

“Nos finais de semana, a diversão era vir até aqui, engraxar os sapatos com o Jacques – à época, o único engraxate nas redondezas – e depois apanhar o bonde ali na esquina. Sim, ali mesmo ao lado do prédio da assembléia. É. Por ali passava uma linha de bonde. Dali seguíamos até a Praia de Iracema. Chegando lá, era tomar banho e voltar.”

“E o pega-pinto?”

“Sim, era uma mistura que o Mundico, dono de uma lanchonete aqui perto, fazia e dava pra gente”. Ajudava, de acordo com seu Galdino, a fazer descer garganta adentro “meio-pão sem manteiga”. Depois, era ir embora. Eis o barato de outrora: praia de Iracema e pega-pinto do Mundico.

Aos 82 anos e morando no bairro Edson Queiroz, seu Galdino enfrenta a distância e, de ônibus, desembarca na Praça dos Leões diariamente. Procura, sem pestanejar, um banco. Dali a pouco chegarão os amigos de dominó, cerca de quatro ou cinco rapazes, contemporâneos seus, que varrem a manhã encurvados sobre uma tábua gasta pelo arrastado das pedras. Valdeci, agora decidido a falar, atesta: “Eles jogam todo dia aqui, a manhã inteira”.

E jogam mesmo. Ao erguer a cabeça do bloco – o maldito bloco de notas –, encontra seu Galdino, já de pé, lhe estendendo a mão. Cumprimentam-se: viesse mais vezes, que estavam ali quase todos os dias, dizia o senhor. O “quase”, claro, é um baita eufemismo – a verdade é que, dia sim, dia sim, os meninos levantam vôo de seus lares, largando os seus e, dentes na fresca, reúnem-se em torno do tabuleiro.

Convite aceito, o de seu Galdino. O menino-repórter, triste por lhe faltarem tantos capítulos da história interrompida sabe-se lá em que ponto, fazia cálculos para os próximos dias. Acaso lhe sobrasse algum tempo,voltaria à praça. Não pela estátua da Raquel, de resto deslocada entre feras – o Gal e os felinos. Mas, à cata dos capítulos que Galdino ainda lhe devia.

Já distantes, a trupe de jogadores inveterados de dominó se prepara. Armam o ringue. Começam a partida. Logo caem respingos de uma chuvinha que deixa qualquer um esbaforido com o mormaço subindo e, sem pedir licença, invadindo as narinas de quem ali estava. Era o jeito mudar, banco era o que não faltava. Foram arranjar-se ao lado de umas plantinhas espinhosas. Escorregasse a perna do banco e, de costas, seria o adeus.

A postos, começa, finalmente, o game. Em pouco, seu Galdino dispara com três vitórias consecutivas, mas logo é alcançado. No encalço, o páreo mais duro, senhor empertigado e metido a galanteador. A sorte, pelo visto, lhe vira as costas, e permanece cinco ou mais partidas sem vencer. Àquela altura, todos, à exceção do mais novo entre eles, emparelham-se com mais de seis pontos cada um quando, as pernas estalando de dor, o menino-repórter desiste de assistir e vai embora.

Antes, tivera o cuidado de anotar expressões, pensamentos e lances da vida mirabolante de seu Galdino, que prefere não contar. Ou, por outra, achou por bem aguardar. Afinal, são, como gosta de dizer o amigo, mais de 60 anos “pastorando vento” na praça dos Leões ou General Tibúrcio. Quando de posse do retrato inteiro, e não apenas dos pedaços, diz como foi.

No caminho, esbarra nos colegas de sala. Fulano enfiara-se na igreja: o pároco tinha permitido a visitação extemporânea. De modo que, encimados na torre, tinham visto a praça coberta de benjamins e, ao lado, após terem procedido às mesmas explicações – a saber, de que eram estudantes e outras coisas –, conseguiram permissão para subir ao último andar do velho Hotel Brasil. De lá, descortinaram boa parte do centro de Fortaleza e o mar e o céu azul que doía na vista.

Em baixo, o menino-repórter. Ele, sim, tinha voado pra longe nas memórias de um velho.

*** the end

Duas boas notícias

Doze dias sem um post... O que diriam desse blog os teóricos, ou não, da comunicação online e sua dinâmica? Melhor não saber. O certo é que depois de um longo planejamento com direito a viagem e tudo, o TR.E.M.A. começa a juntar as coisas. Notícia boa que pode daqui há alguns dias começar a dar fim a essa intermitência crônica da qual padece esse blog.

Outra coisa! O grupo conseguiu ter dois projetos aprovados no Edital das Artes da Funcet e em 2007 não terá que tirar dinheiro do bolso para pagar as passagens de ônibus para a série Cadeira com Rodas, seja escrevendo ou gravando.... Depois a gente apresenta melhor as coisas pra quem ainda insiste em passar aqui em frente e vê se está aberto ou se ainda fechado para balanço.

um abraço galera,
pedro rocha

quarta-feira, outubro 11, 2006

O avesso do farol


Texto: Henrique Araújo

“Farol é fruto de uma decisão política afinada com a criação de instrumentos que possibilitem o encontro de diferentes grupos sociais e territoriais. Projeta-se sobre a cidade polifônica, lugar da humanidade plena, do cruzamento de distintos espaços e tempos, da troca de narrativas que dão sentido à vida e das inúmeras formas de reinventá-la”. E por aí vai...


À guisa de lead (ou parágrafo introdutório contendo as informações mais relevantes para o leitor)

Lançada pela Prefeitura Municipal de Fortaleza no começo de outubro, a revista Farol tenciona, segundo entrevistas que pipocaram, paradoxalmente, nos cadernos de cultura dos principais jornais da cidade, fazer incidir seu cone de luz sobre essa zona em penumbra que é a periferia de Fortaleza e demais grotões de miséria encravados nas chamadas “áreas nobres”. Não uma luz permeada de néon. Absolutamente. A luz a que se propõe Farol é de natureza diversa. São cinqüenta páginas de texto e imagens belíssimos. Publicação bimestral e gratuita, seus mais de 20 mil exemplares deverão alcançar, por força da mobilização das comunidades, os mais variados rincões de Fortaleza. De sua leitura, um alento. Exceto quando os textos enveredam, aqui e ali, por caminhos estilística e semanticamente cor-de-rosa, motivados pela busca desenfreada em captar a tal da “alma encantadora das ruas”. É quando percebemos o calcanhar de Aquiles do jornalismo, muitas vezes, raso de reflexões e exageradamente preocupado em humanizar, textualmente, os personagens que retrata.

No mais, ânimo para estudantes de jornalismo. Quero crer que sim, que a revisa representa a possibilidade de uma outra prática jornalística, mesmo limitada à meia-dúzia de pressupostos.

Esqueci de responder alguma questão seminal?


Aqui tem início o texto propriamente dito

Tem gente que faz isto: pára e pensa no sentido das coisas, para que servem, como nasceram. Diante da revista, matutei: farol serve pra quê? Acertou quem respondeu orientar, dar sentido de direção, etc. A revista também cumpre esse papel, mas não apenas isso. Afinal, onde podemos encontrar o tal farol? Defronte ao mar, à faixa litorânea, mesmo que, com o passar das eras, tenha perdido importância, tornando-se anacrônico. Daí, veio a conclusão: Farol desvirtua o farol, construção cuja razão de ser é orientar a navegação no mar. A resposta é, a bem dizer, ordinária: ao invés de se voltar para a faixa litorânea – a faixa que, bem-entendido, amiúde ocupa os espaços nos meios de comunicação –, Farol projeta seu cone de luz Fortaleza adentro, iluminando-a e, dessa forma, trazendo à baila a periferia da cidade. Farol bizarro, mas necessário. É o que dizem; e eu confirmo.

Noite de lançamento no entorno do Farol do Mucuripe. Farol Velho, diga-se. Comunidade presente, participante. No palco, mistura boa: capoeira, rap e o cancioneiro popular encarnado na Caninha Verde, presente igualmente nas páginas da revista. A gente chega, aproxima-se. Ao fundo, uma massa líquida clareada pela noite de lua. Sobre nossas cabeças, o farol. Nas mãos de moleques brincantes, revistas. Algumas amarrotadas feito qualquer papel.

O andar no meio de tantas pessoas favorece o surgimento de alguns pensamentos. A cidade, a relação com a cidade, é a mesma que se tem com as gentes: dia a dia, azeita-se, estreita-se. Ou, pelo contrário, deteriora-se, até alcançar a ruptura. Assim tem sido. Nunca tinha ido ao farol novo – muito menos ao velho, onde estávamos agora. Surpreso, gostosamente surpreso. É bonito, imponente até. Nova iluminação, as sombras dos meninos e meninas projetada contra os muros do farol. Quem viu isso? Eleuda de Carvalho. Ao lado, escutei. A dobra no olhar, é o que Eleuda sempre busca. E acha.

Revista em punho, após alguns minutos, vamos embora. A vontade de ler é maior. Um pouco invejosos, confesso. Mas inveja boa, se é que há.

Horas depois, no conforto de casa. Abro a revista novamente. Nas páginas, o areial do campo do América. Não apenas o campo, mas o que viceja no entorno, nas casinhas caiadas cujo sossego interior é freqüentemente invadido por... bolas. Dessas de couro com parte dos interstícios emergindo entre as costuras.

Ainda no campo, uma foto destaca-se – ou eu a destaco entre as demais: dois meninos assistem à partida entre o Azul e o Vermelho, final de campeonato. Os times arranjados ali mesmo na comunidade. No centro do campinho, dão início à peleja com um toque na bola. Ao fundo, encostado a uma das traves, um vira-latas ergue a perna traseira direita e, sem-cerimônia, espirra o seu jato de urina.

A menina, ao fim da revista, sorri encantada com algo que nos escapa. Entretida com o milho, espraia os dentes muito brancos. A boca é toda bagaço de milho verde cozido.

“Farol quer contar histórias de vida atemporais, operar com um conceito de cultura ligado à vida e não apenas às manifestações artísticas consagradas, apostar na volta da grande reportagem feita de narrativas”.

Entre os dois instantes flagrados por fotógrafos de Farol, muita coisa a rolar: o Passeio Público por ele mesmo – a repórter faz as vezes de Chico Xavier e, incorporando o lugar, deixa às claras o que lá sucede. O logradouro emerge, portanto, cheio de vida das páginas. O mesmo acontece com a Comunidade das Quadras e os personagens nela implicados; idem com o bairro do Mucuripe, seus pescadores, suas histórias, suas mulheres. E tantas outras narrativas, histórias que não sabemos porque ninguém se interessou em contar.

“Quem faz a revista acredita, assim como o escritor Ítalo Calvino, que as palavras têm que lutar sem descanso contra a dureza e impermeabilidade da paisagem urbana e que cabe a elas retirar peso do mundo, construindo imagens de leveza”.

Farol busca, grosso modo, “desafinar o coro dos contentes”. Ou, por outra, afinar o dos descontentes, enfeixando-os e contribuindo para o bom-funcionamento da engrenagem dos movimentos sociais. (Mais outras tantas coisas que não falo por preguiça).

sexta-feira, outubro 06, 2006

Num quintal indígena


Texto e fotos: Raquel Gonçalves


Capítulo 2

Mais uma sábado se segue e o sacrifício da labuta às 8 da manhã se mistura com o tesão de estar ali, simplesmente ouvindo. A casa cheia de meninos parece me convidar para entrar até o quintal, onde Do Carmo e Neide, sua mãe, lavavam roupas. “Bom Dia!”. “Hoje Do Carmo não pode sair não, porque tem que me ajudar aqui”. “Fique tranqüila, hoje eu vim só pra conversar com vocês mesmo, não foi para pescar no mangue não”. “Ah, finalmente concertamos o barco, só de ‘picha’ foi 60 reais, ainda teve 20 do serviço do homi, semana que vem a gente vai pescar de barco.” Picha é o material que eles usam para remendar as fendas nos barcos de madeira, segundo Neide, é tipo o mesmo material que se usa pra fazer asfalto.

Aquele quintal me remetia a um cenário recorrente. Um fogãozinho artesanal a lenha com uma panela de feijão em cima; um tanque/caixa-d’água, de onde se enchia as duas únicas bacias para lavar a roupa; uma tábua de madeira se fazia de banco, onde sentei e ninei o pequeno Ivo. A banheira de plástico de Ivo agora era bacia de lavar roupa também. E assim se seguiu o bate papo naquela manhã nublada.

Objetivo? Simplesmente ouvir e tentar sentir um pouquinho do ser humano naquelas pessoas. “Ontem a Liduína, que é uma moça que sempre ajuda a gente, deu um fogão para Neguinha e uma cama de casal pra mim. Ela mora longe, lá no Araturi, perto do Metrópole, mas a gente foi buscar. Foi eu, Neguinha, Ivo e meu cunhado pra ajudar a trazer a carroça com as coisas. Saímos 11 horas da manhã e só chegamos de noite” Do Carmo estava entusiasmada com sua cama nova. “Aí eu dei minha cama de solteira para Neguinha. Minha cama nova é grande, quase não cabe no quarto.” Espírito de luta. Do Carmo contou do dia anterior longo e cansativo. Em suas palavras o que predominava não era o cansaço, mas sim a alegria de seus novos pertences. Mesmo quando falamos de carroça humana. Lavava roupa, intercalava com os cuidados do filho Ivo, olhava o feijão.Tudo ao mesmo tempo.



“Do Carmo passa aí a escova na minha chinela nova que a mulher me deu”. Gritou Neide lá de dentro. As árvores do quintal sombreava o lugar onde conversávamos, já que o sol esquentava e despontava lentamente entre as nuvens. Neide foi lá dentro fazer alguma coisa e ficamos só. Do Carmo e eu. “Eu tou querendo comprar um terreninho pra morar eu e Ivo, mas mamãe na quer não. Quando eu disse que ia ela começou a chorar, pedindo para eu ficar. Ela é muito apegada ao meu menino” “Tu não gosta daqui não, de morar com tua mãe?” “Gosto, a gente se dá bem, mas mamãe não deixa eu sair de casa as vezes. Ela não deixa eu ir pro Icaraí, por exemplo, tem medo que eu vá, diz que é perigoso. Eu nunca conheci a praia, queria ir. Nunca fui lá. Às vezes quero ir na casa das minhas irmãs também.” “Quanto é um terreninho?” “Eu vou receber um dinheiro aí por causa do Ivo, aí dá pra comprar uma casinha já pronta lá perto do Centro Cultural. Sempre que nasce uma criança, vovó assina uns papéis lá, aí gente ganha um dinheirinho”.

Histórias e mais histórias iam se seguindo entre roupas, crianças e feijão. Ivo fez xixi em cima de mim. Peguei a caneca, afundei no tanque e me lavei. “Sua calça é desse tecido aí, seca rápido” disse a irmã de Do Carmo, Guga, 10 anos. “Você não sabe o que aconteceu ontem. Veio um velho aqui em casa querendo comprar um sapo que ele tinha visto aqui no quintal. Sapo grande, enorme. Queria pagar cinco reais no sapo. Aí eu peguei e fui procurar o sapo, mas ele tinha ido embora, sumiu. Mamãe acha que é pra fazer macumba. Eles colocam o nome de alguém dentro da boca do sapo e costuram” “Credo, vocês não ficaram com medo não?” “Não, eu queria era vender o sapo.”



Lá vem Neide com linha, agulha e umas roupas na mão para costurar no quintal, batendo papo com a gente. “Como é que foi a pesca essa semana, Neide?” “Pesquei de segunda a quinta, agora que meu filho saiu do hospital. Aquele lá que eu te contei semana passada, da diabetes. Peguei quarenta cordas de caranguejo. Fui vender no sábado e no domingo lá no Conjunto Ceará. Cada corda a dois reais. Deu um dinheirinho, mas a gente cansa muito. Antes era de monte. A gente entrava no rio, aqui mesmo na beira, pegava facinho de 5 a 6 kg de camarão, os caranguejo eram grande, agora, a gente passa o dia e a noite pescando para pegar 2kg de camarão.” Do Carmo entrou na conversa falando do calote do homem do Mercado Central. “Ah mãe, o Rogério, o homem lá dos colares não pagou tudo não. Ele só pagou a metade, 30 reais pelos colares da gente.” A venda de colar é a atividade que atualmente compete com a pesca. Catar semente para realizar o trabalho artesanal da construção dos colares ficou mais rentável do que afundar o pé na lama, mas nessas condições de desonestidade...

Sobrinho Igor veio correndo lá de dentro com um chapéu de palha cheio de santinhos políticos. “Nossa quantos santinhos... você vai votar em quem Do Carmo?” sem pestanejar, “eu vou votar no Lula, porque se não a gente perde o bolsa escola. Pra deputado nas eleições passada a gente daqui de casa votou no Dourado, índio Tapeba daqui mesmo, mas ele não ganhou. Esse ano a gente vai votar no Cláudio, que é também índio, vamos ver se ele ganha”. No quintal, Igor e Guga oras brincavam com a pilha de santinhos de vários candidatos, oras brigavam. Coisas de criança. “Eu já tirei todos os meus documentos. Eu que escrevi em tudinho: CPF, título, RG. Neguinha não tem nenhum, só o registro de nascimento.” A educação é meio precária na escola da região. “Na escola a professora passa de 3 a 4 dias sem vir dá aula.” Do Carmo está na 5º série, mas não parece muito empolgada com os estudos não. Sua mãe mesmo disse “Do Carmo não vai pra aula porque não quer”.

Ao mesmo tempo que parece Deus ter esquecido aquele lugar, há uma serenidade incrível na vida cotidiana daquelas pessoas que só pode existir pela presença dele mesmo. Apesar das dificuldades, a simplicidade transmite muitas alegrias nas pequenas coisas. “Você acredita em Deus, Do Carmo?” “Acredito, eu rezo todo dia quando vou dormir. Eu peço um bocado de coisas. Aqui na comunidade de 15 em 15 dias vem um padre celebrar uma missa pra batizar as crianças e pra rezar. Geralmente é dia de sábado. Passa uma mulher aqui nas casas chamando pra gente ir lá.”

No curto caminho da casa de Do Carmo até a casa da mulher onde tem a missa, o bar está sempre cheio de gente jogando sinuca, bebendo cachaça e escutando forró. Em frente ao orelhão da vila, lá está. Algumas cadeiras de plástico, um altar improvisado e umas 20 pessoas, talvez esperando a bênção de Deus.

segunda-feira, outubro 02, 2006

A todos que 'mariscam' sonhos



Com a ansiedade de um filho que está para nascer....
Um produto maturado pelo grupo
e produzido pela sede do corpo feminino Tr.e.m.a.
Talvez funcione
o teaser publicitário

Na cautela de seus passos
Seguimos rumo ao desconhecido,
Passamos por lamas e lixo
Chegamos nós ao ventre da fatídica imutável realidade?

O mangue vive dentro desse seio indígena


Por Raquel Gonçalves


Em uma de nossas tentativas de planejamento, devaneios, surtos burocrático e anseios o grupo Tr.e.m.a. pensou em explorar, inicialmente, a macro temática do mangue e a relação de sua biodiversidade com os seres humanos e com urbano. Daí surgiu a idéia da vivência com as marisqueiras da comunidade indígena Tapeba, na Caucaia. O trabalho com a temática acabou se perdendo imerso em tantos projetos que o grupo tentou abarcar, porém a idéia da vivência com essas mulheres não saiu da nossa cabeça desde o dia em que nos decidimos por abraçar esta causa. As marisqueiras viraram pauta. E ai fomos nós, Angélica e eu, com um pretexto de fazer uma grande reportagem, em busca de um novo mundo que nos era desconhecido.

O resultado no papel não consegue transmitir os momentos reais em que estivemos em contato com essas mulheres, mas tentam remontar as suas vidas fazendo-as falar por si só de seus desejos, problemas, sonhos, anseios e medos mostrando muito além da função que desempenham.

A nossa preocupação com a naturalidade, com o não-direcionamento dos encontros, dos diálogos nos acompanharam em todas as visitas. A identificação de “jornalistas/pesquisadoras” ainda demonstra uma barreira a ser superada em muitas e muitas entrevistas e contatos que ainda virão pela frente... Mas acredito que seja possível adquirir essa naturalidade da relação que surge com esses novos contatos, mesmo com essa identificação inicialmente assombrosa. A comunicação ‘forçada e forjada’ nos entristece, principalmente quando percebemos que existe tanto isso dentro do jornalismo. Vamos tentando burlar.

Das impressões primeiras... estranhamento e curiosidade. Constatações: miséria e perrengue. Mulheres que antes tinham a sustentabilidade do mangue e viviam somente da mariscagem, hoje se mostram desapontada com o rendimento da atividade. Elas buscam alternativas e encontram várias formas de ir tocando o barco. Da Maria Castoré, que abandonou a atividade por problemas no joelho, à “Maicon”, filho de quatro meses da adolescente/mulher Neguinha, 16 anos, o mangue vive em todos que por ele passam, partilhando sonhos e dores nesse espaço ambíguo de (des)harmonia.


Capítulo 1: Entre lama, mariscos e conversas.

Por Angélica Feitosa

Ao longo do caminho, na estrada, o feminino prevalece. Cada uma com suas cordas cheias com o crustáceo vivo, cinzento, se mexendo. Numa mão. Na outra, pelo menos um menino se agarra. A cada carro que passa, elas estendem a mão. Não gritam, não falam, simplesmente oferecem. Poucos param. Seguindo a estrada, logo se avista a placa imponentemente erguida com o nome da tribo, os Tapeba, e a inscrição do Governo do Estado. Mais a frente, surge o Centro Cultural, todo de palha e madeira, imitando uma oca. Tudo muito bonito e organizado. “São artigos produzidos pelos próprios índios”, alguém avisa. Os artigos são diversos: colares, cocás, saias de palha. Ao lado da grande oca, uma pequena cerca guarda as plantas medicinais, também cultivadas pelos índios.

A vista do Centro Cultural causa uma ilusão. Quando se avista a oca, acredita-se o que vai se encontrar são os estereótipos indígenas: pessoas nuas ou pouco vestidas, de cocá, arco e flecha em suas casas de palha onde vivem várias famílias, vivendo em comunidade, onde tudo é de todos. O de todos para os índios, em Caucaia, município da Região Metropolitana de Fortaleza, é, na verdade, muito pouco. O extrativismo permanece, mas o arco e a flecha, que talvez nunca tenha existido nessa região, dão lugar ao fojo e a rede. As casas de tijolo cru, doadas pelo antigo prefeito, o Domingão, logo frustram quem esperava encontrar atrações exóticas. São iguais as de muitas famílias “brancas”. Não têm saneamento e os “gatos” levam luz. “A gente já chamou a Coelce, ninguém vem, o jeito que a gente encontrou foi esse”, explica Raimunda Teixeira, índia de 62 anos, oito filhos, 30 netos e 20 bisnetos. A simpática senhora hoje é funcionária pública no Posto de Saúde Vítor Tapeba, que atende a comunidade indígena às quartas-feiras. Mas até bem pouco tempo Raimunda era Marisqueira. Gosta tanto da antiga profissão que de fez em quando ainda vai ao mangue colher seus mariscos. “Mas vocês procuram uma que ainda cata o caranguejo, né? Está aí a minha neta, Maria do Carmo”.

A timidez não permite que Maria do Carmo, 17 anos, olhe nos olhos. No diálogo inicial, a menina é monossilábica. Frases completas saem apenas quando vai brincar com o filho Ivo, de quatro meses. “O pai não é Tapeba não”, avisa. Também não namora mais ele. “Mas ele ajuda”, ameniza. Ivo não mama, por isso quando Do Carmo vai pescar, o menino fica com a mãe, ou com as irmãs. Quando não pesca, a garota confecciona colares, para vender em Fortaleza, principalmente no Mercado Central, na Jurema, bairro de Caucaia, na rua (Centro) também. Menos no Centro Cultural Tapeba. Aliás, a fonte de renda da maioria do povo da comunidade é a pesca e a confecção de colares. Todo mundo faz e se aprende de pequeno. “A gente pode ir pescar com você? Mas não é só para tomar banho de rio não. A gente quer pescar mesmo”, nos oferecemos. “Podemos marcar qualquer dia?”. “Uhum. Vocês ligam antes, não é?”. A conversa é interrompida pela irmã da Maria do Carmo. “Você ganhou no bingo”. Bingo? É, todas as tardes é o bingo que movimenta a aldeia. “Você aposta 25 centavos e pode ganhar até cinco reais”, explica a vencedora. “Meu lazer é jogar bingo aqui mesmo, é como eu me divirto por aqui.”

No dia que chega, Maria do Carmo nos recebe em sua casa. O shortinho curto, a blusa nadador e o balde com as armadilhas para pesca. Os fojos são umas armadilhas feitas com uma lata de óleo e um pedacinho de pau, amarrados com um cordão de borracha. Como isca, uma folhinha de qualquer árvore do mangue. Tanta folha fora, porque o caranguejo entra na lata?. “Ele é curioso”, explica Neguinha. Cada fojo pega um caranguejo. Maria do Carmo leva uns 50 toda vida que vai pescar, o que dá para cinco cordas, vendidas cada uma a R$ 2,00. Tem também o gereré que é específico para pegar siri.

Acompanham-nos até o mangue Neguinha, Francisca de Batismo, de 17 anos, índia de pele morena marcada pelos os traços Tapeba, olhos cor de mel e cabelos assanhados. Nos braços, o filho Michael (lê-se Maicon) um mês mais jovem que o Ivo. Irmã e sobrinho de Do Carmo “Eu queria que o nome dele fosse um nome indígena, mas a minha sogra jogou uma praga. Disse que se o nome dele não fosse Maicon, ele ia morrer. Maicon quer dizer Michael”, conta a mãe orgulhosa. Sempre que pesca, Neguinha carrega o Michael. Não o deixa com outros em casa de jeito nenhum! Nem com a mãe, nem com a sogra. Às vezes com o marido. Para onde vai leva o menino gordinho e corado, tudo pelo leite materno. Mas não é por ciúmes do filho que Neguinha não o larga. Ela, na verdade, teme que a Caipora leve o menino. Isso mesmo, o ser folclórico fumante e de assobio alto e fino. Neguinha jura que, quando a mãe estava grávida dela, a caipora deu-lhe uma carreira e só escapou porque entrou em casa. “Ela quer levar embora menino dentro e fora da barriga”.

A conversa se desenrola na uma hora de caminhada até o outro lado da margem do rio, onde Do Carmo considera o melhor para a pesca. No caminho, o cheiro forte do mangue vai se intensificando à medida que se adentra. A lama cobre toda a canela, se entranha nas unhas. Maria do Carmo, à frente, mostra toda a intimidade com o lugar. Sigo devagar, com receio do cheiro forte, os pedaços de pau que ferem o pé, dos respingos do barro gerado sobre as cochas e os braços. Uma infinidade de mariscos cruza o caminho. São siris, caranguejos e o curioso mão-no-olho, que parece com o caranguejo, embora menor, e tem uma enorme pata que cobre metade do que seria o rosto. Tivemos uma verdadeira aula de a céu aberto. “Tá vendo esse bicho aí? É a Maria Farofa, se você comer você fica bebinha”, explica Do Carmo. A matéria prima para a feitoria do artesanato estava ali, por toda parte: sementes, folhas, palha. “É com essa planta aqui que a gente faz o cocar e a saia do índio, ela chama ‘Ôi de Paia’, continua Neguinha.

Atoleiro na lama do mangue, água na metade da canela, espaços vazios, sem vegetação pela antiga salina, escombros de velhas casas Tapeba. “Ta vendo esse descampado aqui? Às vezes a nossa tribo vem dançar o Toré aqui, bem próximo da natureza. Eu adoro”, conta Do Carmo. Finalmente o rio. De longe, a vegetação do mangue, com suas plantas tortas, raízes à mostra. De perto, a imundície. Uma grande quantidade de lixo se amontoa na margem. Uma espécie de cemitério de chinelos, claro, sem os pares. Sacos plásticos, garrafas, roupas velhas e tudo mais que se possa imaginar. Para nossa surpresa, um copo do Mac Donald’s. Reflexo da ação de vários anos, da própria comunidade. O lixo, às vezes os índios queimam, às vezes jogam no rio.

Na chegada, Maria do Carmo arruma cuidadosamente as armadilhas. Um pouco distante de nós. Os caranguejos se assustam com os homens. O próximo passo é catar as pixuletas. Hein? Mariscos compridos, acinzentados, com duas conchas que protegem o animal dentro. Com a ajuda de uma canoa se chega à croa, banco de areia, seco pelo esvaziar do rio. As pixuletas são rápidas. Maria do Carmo tem agilidade, com uma pá corta a terra até ver os buraquinhos feitas pelo caminho dos mariscos. Enfia a mão e puxa o bicho gosmento, que rapidamente entra na sua proteção.

As duas aprenderam a pescar com a mãe, Neide, filha da índia Raimunda. “Minha mãe trazia a gente pequenininha pra ensinar a catar o caranguejo”, conta Do Carmo. O pai? Morreu de cirrose. A rotina dela inclui, além da pesca e da feitura dos colares, as aulas do supletivo do primeiro grau, na escola da comunidade. “Eu gosto de ser tapeba. Mesmo que pudesse, não sairia daqui não”.

A intimidade delas com o lugar nos dá inveja. Elas permanecem no trabalho e continuam cuidadosamente, a zelar pelo que já foi pescado. Alguns Aratus já passeiam no fundo do balde perdidos entre nossas peças de roupas que ocupavam o mesmo espaço dos crustáceos ainda vivos. Como num desabafar Do Carmo diz “Por mim eu morava aqui, no meio dos matos. Sozinha eu não tinha coragem não, mas assim... Se viessem umas três casinhas eu tinha. Lá onde moro (Vila da Ponte) é muita zoada, fica perto da pista e as vezes tem muita briga por lá”. Uma faculdade? “Pode ser, a que estudasse a pesca”.

Enquanto pesca no rio, Do Carmo sonha com o mar. “Nunca fui à praia, já vi o mar de dentro do rio das Barra, quando vou pescar de barco, mas a praia mesmo, não sei nem como é”. Um estalo. “Eita, o fojo bateu!”, avisa Do Carmo. A zoada do pau batendo na lata confirma que algum ser caiu na arapulca. E pode ser qualquer coisa, não é só caranguejo não. Até rato Maria do Carmo já pegou.

Neguinha me espera no caminho de volta. O lameiro, o cheiro forte. A conversa se desenrola ao som do rinchado de catarro de Michael e dos galhos quebrados pelos pés que insistem em passar por ali. Neguinha confessa que sua condição indígena não traz tanto orgulho assim. “As pessoas ficam fazendo hora, chamando nós de índio, perguntando pelo arco e flecha ou então gritam assim: cuidado com as fechas. Eu não gosto. Quando me perguntam se eu sou Tapeba, eu minto, digo que não sou”. “Ela já furou o marido com uma faca”, cochicha Do Carmo. O motivo? Ele não quer que Neguinha saia de casa, quando ela sai, a briga está feita. “Ele quis me bater e eu meti faca nele”, confirma corajosamente. Quando o assunto é namorados, a agora falante Do Carmo desconversa. Volta a ser monossilábica. Quem sabe na próxima visita.